Entre
seres em transe e batidas de atabaque, surgiu a inspiração
para misturar o tupi, o rap e as raízes africanas
Tocador de atabaque num terreiro de umbanda em Vila Medeiros,
na zona norte, Renato Dias ficou intrigado, certa noite, com
as frases balbuciadas, em aparente transe, por um guia espiritual.
Disseram-lhe que talvez fosse uma língua indígena.
Uma das entidades da umbanda é o caboclo, que representa
o índio brasileiro.
Independentemente de quaisquer convicções religiosas,
aquela cena acabou se materializando no primeiro CD de rap
com as letras em tupi de que se tem notícia. "Fiquei
interessado na sonoridade daquelas palavras", diz Renato,
que se prepara para lançar, neste mês, as músicas
de "Kaumoda", que, em tupi, significa uma entidade
espiritual maligna. O projeto só foi possível
graças a uma inusitada mistura de um terreiro de umbanda
com o rigor acadêmico da Universidade de São
Paulo.
Depois daquela cena no terreiro, Renato Dias foi procurar
ajuda na USP e encontrou o professor Júlio Pedrosa,
um dos raros especialistas em tupi, língua falada pelos
índios na costa brasileira. Dedicou-se, então,
nos últimos dois anos a aprender os rudimentos da língua.
"Fiquei seduzido pela melodia das palavras." Mas
já sabia que, dali, sairia inspiração
para um projeto musical, mas com um ritmo bem distante do
que se ouve nos terreiros: o rap. "Essa mistura expressa
como eu vejo a alma da cidade."
Os cultos afros são a principal fonte de inspiração
de Renato Dias, que, desde menino, freqüenta os terreiros
na zona norte. Foi daí, entre seres em transe e batidas
de atabaque, que ele tirou inspiração para misturar
o rap e as raízes africanas. Quando ouviu aquelas palavras
incompreensíveis, supostamente em tupi, imaginou-se
diante de mais um pedaço da "alma" musical
paulistana, com sua diversidade. "Por que não
misturar a batida do rap com a sonoridade de um língua
dos índios?"
Além de ajudá-lo a compor rap, os terreiros
serviram para Renato se interessar pela cultura africana em
geral e pelo samba em particular. Por ser um reduto de ex-escravos,
a zona norte, onde Renato sempre morou, é um local
apropriado para esse tipo de interesse.
Entrou, então, no grupo Kolombolo, que pesquisa as
raízes do samba paulistano. "Muitos compositores
estão bem velhos e não tinham registro de sua
obra." Já há 70 horas de gravações
de conversas e melodias a serem divulgadas ao público.
Ali estão, por exemplo, as histórias do Nenê
de Vila Matilde, entre muitos que ajudaram a criar as escolas
como Vai-Vai, Peruche e Lavapés.
Entusiasmado com o projeto, o musico e empresário Guga
Stroeter viabilizou um apoio para que o Kolombolo tivesse
um estúdio de gravação. Fazer rap em
tupi, inspirado na umbanda e auxiliado pela USP, é
uma mistura exótica. Mas não tão exótica
quanto a realizada por Renato Dias e pelo Kolombolo no carnaval
passado, quando estimularam pacientes de programas de saúde
mental a produzir um bloco e sair desfilando pelas ruas de
São Paulo junto com seus psiquiatras -esta, sim, uma
mistura de outro mundo.
Coluna
originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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