O Brasil
tem 42,6 milhões de pobres, e a maioria deles se sentiu
favorecida nos últimos 4 anos. O resto é detalhe
A principal explicação para a força
de Lula, apesar do baixo crescimento econômico e da
montanha de acusações de corrupção,
é extremamente simples. O Brasil é um país
com 42,6 milhões de pobres -e a maioria dos pobres
sentiu-se beneficiada nos últimos quatro anos. O resto
é detalhe.
Pode-se argumentar (e com razão) que o país
poderia ter ido mais longe na geração de empregos:
cansamos de ouvir que, na América Latina, ganhamos
apenas do Haiti. Também pode-se falar (novamente com
razão) que Lula, desde que eleito, quase não
saiu do palanque e usou e abusou da publicidade oficial. Mas
o fato é que o voto dos mais pobres não vem
sendo orientado, essencialmente, nem pela propaganda nem pelo
falatório eleitoral, mas pela percepção
real de melhoria das condições de vida.
Essa percepção começou a ser traduzida
neste ano, com mais detalhes, por economistas especializados
em desigualdade social, como Marcelo Nery, da FGV, e Ricardo
Paes de Barros, do Ipea. Ambos preferiram olhar além
da média nacional, na qual faz todo o sentido ficar
martelando nossa pífia posição, semelhante
à do Haiti.
Nas camadas mais ricas, a média da evolução
anual da renda per capita, de 2001 a 2005, foi de 0,4%. Tais
camadas da população têm capacidade de
repercussão, mas não são a maioria dos
eleitores. No entanto, quem olhasse para baixo veria um movimento
diferente e encontraria a China. Entre os 10% mais pobres,
ocorreu uma subida anual de renda de 8%; entre os 20% mais
pobres, de 5,9%; e, enfim, entre os 30%, de 4,9%. Não
era fácil ver direito essa tendência porque,
além da baixa repercussão desse grupo, que vive
nas periferias ou no interior, ela refletia fatos pouco estudados,
como a combinação de ampliação
do Bolsa Família com os avanços da educação,
a diminuição da diferença de renda entre
campo e cidade, a redução do preço dos
alimentos e o aumento do salário mínimo. Resultado:
de 2001 a 2005, a taxa de pobreza no país caiu 15%.
Foi essa realidade palpável que sustentou o marketing
de Lula, apresentado como o "pai dos pobres". Olhando
friamente os números, vemos que a queda da pobreza
e da desigualdade teve início no governo anterior,
graças, entre outros motivos, à queda da inflação
e aos programas de renda mínima. Lula, porém,
soube dar continuidade a esses avanços e ampliá-los,
tirando proveito do fato de que a imagem de Fernando Henrique
Cardoso estava associada à estabilidade de preços,
não ao social. Do ponto de vista mercadológico,
reunir todos os programas existentes e dar-lhes o nome de
Bolsa Família foi fundamental, por criar uma marca
própria. Note-se que esse programa beneficia 11 milhões
de famílias, chegando a cerca de 40 milhões
de brasileiros. Nunca, em toda a nossa história, um
programa combateu tão profundamente a pobreza.
A questão agora é saber se a força de
Lula não acabará em vulnerabilidade. Existe
pouco espaço para aumento nos programas de distribuição
de dinheiro aos mais pobres, no valor do salário mínimo
e até para investimentos sociais em saúde e
educação, caso não se mexa nos gastos
com as aposentadorias. De resto, os programas assistenciais
perderão, com o tempo, legitimidade caso não
tirem as pessoas da dependência. As demandas tendem
a mudar de foco. Conquistas do passado nem sempre são
lembradas ou valorizadas: a queda da inflação
serviu para reeleger, com folga, FHC, mas não para
manter seu prestígio popular.
Um crescimento baixo, no ritmo do Haiti, tende a atrair mais
iras, caso os mais pobres não se sintam beneficiados
como vem ocorrendo. Saber como fazer o país crescer
passou a ser a mais relevante questão nacional -e medida
para saber qual será a força do próximo
presidente, seja ele qual for.
P.S. - Existe uma história que mostra como, às
vezes, a esperteza sai caro. Nos dois últimos anos
do governo FHC, preparou-se um plano para unificar todos os
programas de renda mínima, dispersos em diferentes
ministérios, como o da Saúde, o da Educação
e o da Assistência Social. Montava-se, então,
um cadastro único; imaginava-se que essa junção
seria badalada publicitariamente para dar uma marca social
ao governo. Alguns ministros (José Serra, por exemplo)
imaginaram que perderiam um patrimônio eleitoral. O
plano não saiu do papel -aliás, saiu, só
que no governo do PT. A verdade é que Fernando Henrique
Cardoso foi o mais importante cabo eleitoral de Lula.
Coluna
originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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