Nas suas
lembranças está o dia em que, num jogo decisivo,
alguém lhe perguntou: "Aquele ali não é
seu pai?" Era
UM DOS criadores do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum,
Cao Hamburguer integra aquele tipo de paulistano, quase em
extinção, que fazia da rua a extensão
da casa. Quando menino, o bairro em que ele morava -o Butantã-
não oferecia o perigo dos carros nem a ameaça
dos assaltantes. Naquela época, estavam construindo
as marginais, e um dos prazeres da garotada era brincar e
se sujar com a argila macia das escavações.
Mas o melhor de tudo era a abundância de áreas
verdes, onde Cao se destacava como goleiro. Sua destreza o
levou a titular do Bandeirante Futebol Clube, no qual, para
a surpresa das platéias, jogava (e bem) uma menina.
"Não vou exagerar, mas acho que era nosso melhor
jogador." A partir de amanhã, será possível
ver como o menino apaixonado por agarrar a bola acabou inspirando
o adulto cineasta. "Ser goleiro é sempre estar
diferente e ameaçado."
Quando entrou no Colégio Equipe, Cao continuou no
gol. Mas mudaram os prazeres da rua, muitos dos quais se tornaram
noturnos. Seus colegas, na escola, estavam mais interessados
em artes do que em esportes. Era o caso dos compositores e
cantores Nando Reis, Arnaldo Antunes e Marcelo Frommer, além
do artista plástico Nuno Ramos e do fotógrafo
Bob Wolfenson. Na década de 1970, o Equipe, em parte
pela animação de Serginho Groisman, fervia em
shows de música, peças, filmes e debates, sempre
com um ar de resistência. "Aquela experiência
foi tão forte que nem achei necessário fazer
faculdade", comenta Cao, filho de dois professores de
física da USP, Ernst e Amélia.
Diferente mesmo e ameaçado ele se sentiu quando seus
pais foram presos, acusados de dar suporte a grupos de resistência
aos militares. Cao e seus irmãos, desconcertados, foram
divididos e cuidados pelos avós paternos e maternos.
"O que aconteceu na prisão sempre foi um tema
tabu na família." Cao se recorda de uma sensação
de incerteza que jamais tinha experimentado. "Você
sente tudo desmoronar."
Quem carrega essa sensação de incerteza, em
"O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias",
dirigido por Cao, é o personagem Mauro. Não
é um filme autobiográfico, só traz algumas
lembranças do diretor, refletidas no menino cuja ansiedade
oscila entre a expectativa da volta dos pais e o desfecho
da Copa de 70, em meio a brincadeiras de rua no Bom Retiro.
Antigamente habitado em sua maioria por judeus, aquele bairro
e o goleiro servem para ilustrar a idéia do exílio
tanto de seus moradores como o do garoto. Como Cao, Mauro
é meio judeu e meio católico. "Sou da tribo
dos Cajus", brinca o cineasta com a designação
sobre a mistura de católicos com judeus.
Nas suas lembranças mais fortes está o dia
em que, num jogo decisivo do Bandeirante, alguém lhe
perguntou: "Aquele ali não é seu pai?"
Era. Vinha, silencioso, no banco da frente de um Fusca. Cao
saiu correndo para casa. Naquela corrida surgia a inspiração
para uma imagem que, só quase quatro décadas
depois, acabaria nas telas para contar uma história
em uma cidade feita de exílios.
Coluna
originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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