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Foram
vivenciadas as dores dos personagens que, na verdade, eram
as suas, em uma espécie de psicodrama
Ninguém tinha a menor idéia de que as oficinas
de expressão se transformariam num dos mais detalhados
registros já realizados no Brasil (também não
vi nada parecido no exterior) dos meios de despertar o talento
de indivíduos que se imaginam sem nenhum talento e,
assim, ajudá-los a evitar a marginalidade. Descobri
esse mapa da mina educativo por acaso, quando me enviaram
um vídeo promocional sobre um filme de ficção
(sem data de lançamento comercial) que, baseado no
texto do dramaturgo Plínio Marcos ("Querô"),
disseca a violência. Mais do que o filme em si, entretanto,
chamou-me a atenção um detalhe atrás
das câmeras: uma cena do choro real de alguns adolescentes
no último dia da gravação, todos se abraçando
com lágrimas no rosto.
Aqueles jovens eram amadores selecionados para atuar no
filme, a maioria deles vivendo na invisibilidade e na fronteira
da marginalidade da periferia de Santos. Passaram por cinco
semanas de oficinas diárias, em dois períodos,
para que aprendessem a se expressar, soltando o corpo e, depois,
a fala. Foram convidados a vivenciar as dores dos personagens,
que, na verdade, eram as suas próprias. Meteram-se,
involuntariamente, numa espécie de psicodrama. Descobri
que todo esse processo ficou gravado em horas e mais horas
de vídeo, material condenado ao esquecimento. Podemos
ver como eles, nos primeiros dias, estavam duros, desconfiados,
presos, tímidos e cabisbaixos. Vamos sabendo como não
se sentiam reconhecidos em quase nenhum espaço, imaginando-se
soltos ao vento, sem nenhuma perspectiva, divididos entre
a remota possibilidade de serem jogadores de futebol e o nada
remoto risco de se envolverem em algum tipo de marginalidade.
À medida que vão ocorrendo os exercícios,
eles vão assumindo uma nova postura corporal, falam
com mais desenvoltura, entregam-se, choram, sentem o próprio
corpo, insensível pela coleção de violências.
Suas histórias reais, contadas diante da câmera,
confundem-se com uma trama ficcional; em alguns casos, são
mais fortes que o roteiro encenado. As imagens transmitem
a sensação de que aqueles meninos, quase todos
com cicatrizes pelo corpo, ficam mais altos. É como
se fosse possível apalpar o brilho que vai transparecendo
nos corpos suados das oficinas. O ator principal, Maxwell
Nascimento, disse-me que, antes de atuar no filme, não
sabia o que faria no futuro, mas, nas entrelinhas, admitia
que o presente já lhe estava, inexoravelmente, reservando
o pior futuro. "É como se, vivendo num ambiente
sem opção, eu não tivesse nenhuma opção."
Maxwell ganhou, em 2006, o prêmio de melhor ator no
Festival de Cinema de Brasília.
Isso não significa que apenas essa experiência,
tão fugaz, seja antídoto da marginalidade. Sabemos
que o caminho até a delinqüência começa
bem cedo, exatamente no berço, e se propaga na vida
familiar até a escola, gerando a incapacidade de inserção
na sociedade pela carência de competências e pelo
excesso de ressentimento. É o ciclo de ferro da invisibilidade,
só visível na marca dos corpos. Aquelas gravações
são um mapa da mina de um tesouro pedagógico
universal, dissecado em livros: deixam nítida a possibilidade
de abertura para a inserção desses jovens na
sociedade por meio da arte. Essa brecha produz sensação
de pertencimento e, com isso, perspectiva de futuro. É
por isso que os corpos deles parecem ficar mais altos; na
verdade, sua alma está mais altiva. E a capacidade
de se emocionar (o que significa o direito de se sentir frágil
e, portanto, humano) é o caminho para o brilho. O problema
é que, depois da ficção, vem a realidade.
Entende-se, então, a cena real do choro, no último
dia de gravação. Alguém pergunta a um
dos atores qual seria, a partir dali, sua perspectiva. Ele,
rapidamente, responde com outra pergunta: "O que significa
perspectiva?". Por incrível que pareça,
a palavra nem fazia parte de seu vocabulário.
Esse é daqueles documentos que informam solenemente
que o pior dos nossos desperdícios é o de talentos
-deixamos de ter pessoas que brilham para nutrir indivíduos
que matam ou se matam.
PS - Dois jovens das oficinas (Eduardo Bezerra e Samuel Castro)
decidiram seguir carreira no cinema -e, apoiados pelo cineasta
Carlos Cortes, toparam transformar aquelas dezenas de horas
de gravação no documentário, intitulado
"Eu Fiz Querô", mostrando o poder transformador
da educação. O filme será apresentado
no próximo dia 18, às 20h, gratuitamente, pelo
projeto Folha Documenta, no cine Bombril. Coloquei no site
algumas das
imagens. Esse trabalho foi mostrado para 300 adolescentes
de Paraisópolis: pareciam hipnotizados.
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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