Ao punir
os alunos com a repetência, a mensagem que a escola
transmite à criança é: "A culpa
pelo fracasso é sua"
A repercursão provocada pelo comentário sobre
a suposta baixa inteligência dos baianos, feito na terça-feira
pelo coordenador do curso de medicina da UFBA (Universidade
Federal da Bahia), Antônio Dantas, não seria
tão grande se as vítimas do preconceito não
fossem de classes média e alta.
Quando lhe perguntaram por que as notas dos estudantes de
medicina tinham sido tão ruins nos testes nacionais,
o professor foi procurar explicação na genética
e jogou a culpa no QI da população local. Não
bastasse isso, ainda arrematou: "O baiano toca berimbau
porque só tem uma corda. Se tivesse mais cordas, não
conseguiria".
Em resumo, a escola vai mal, mas seria em razão da
escassa inteligência dos alunos, muitos dos quais da
elite baiana. Esse tipo de ofensa é feito cotidianamente
a alunos pobres, na prática chamados de burros, mas
quase ninguém se escandaliza.
Na quarta-feira passada, a Unesco divulgou um ranking mundial
de qualidade de ensino em que o Brasil ficou abaixo de países
como a Bolívia e o Paraguai. Isso porque, entre outras
razões, apenas 53,8% de nossas crianças conseguem
completar o ensino fundamental.
Explica-se a evasão não só por motivos
econômicos -a entrada das crianças precocemente
no mercado de trabalho-, mas devido à repetência.
De tanto ser tachado de incompetente, o estudante, humilhado,
vai embora, não vê razão em ficar se torturando
numa sala de aula onde não consegue aprender.
Na primeira série do ensino fundamental, quase um terço
dos alunos repete o ano. Ao puni-los com a repetência,
a mensagem transmitida pela escola à criança
é a seguinte: "A culpa pelo fracasso é
sua". Não importa a obviedade do fato de que,
se tanta gente não aprende há tanto tempo, existe
algo de errado no sistema -mas muita gente fica com a "teoria
do berimbau", do professor Dantas, preferindo culpar
o aluno.
Para comparar, note que, na rede das escolas particulares
da cidade de São Paulo, a repetência atinge 2%
dos alunos; nas regiões mais ricas, como Pinheiros,
não passa de 1%.
A explicação é simples para a taxa paulistana:
os pais mais ricos e informados não aceitam a idéia
de que seus filhos sejam burros e não possam aprender.
Exigem professores de qualidade -aliás, jamais aceitariam
o absenteísmo docente da rede pública e sabem
que contarão com programas de reforço, além
das mais diversas atividades extracurriculares. Quando a recuperação
regular não funciona, apelam para aulas particulares,
psicólogos, psicopedagogos e, em certos casos, à
ajuda médica.
Fazem isso até que, mais cedo ou mais tarde, o jovem
descubra algum talento, entre numa faculdade e ganhe uma habilidade
-sabemos que muitos dos crônicos alunos relapsos eram
apenas vítimas do excesso de talento, incompreendido
pelo sistema escolar.
Uma das mais interessantes experiências educacionais
que conheço no Brasil ocorre em Taboão da Serra,
um município pobre da Grande São Paulo. É
uma magnífica prova do preço da negligência.
Lá, eles estimulam os professores a visitar a casa
dos alunos para estabelecer uma relação entre
as famílias e as escolas. Com as visitas, os professores
puderam entender melhor os problemas de seus estudantes e
encontrar soluções. Soluções como
encaminhar ao médico uma criança que parece
desatenta ao descobrir que ela não presta atenção
às aulas por causa, por exemplo, da visão ruim
ou do excesso de cera no ouvido.
Além de ter provocado uma série de mudanças
de atitude nos alunos, a experiência surtiu efeito nas
notas. Numa escala de 0 a 100, os alunos visitados em casa
pelos professores tiveram nota em torno de 70 em português
e matemática -a média é parecida entre
os da segunda e os da quarta séries. Entre os não
visitados, a notas oscilam de 40 a 50 pontos. Bastou uma visita,
depois transformada em alguma providência simples, para
que alguns desses alunos não mais se sentissem burros.
O professor Dantas está apanhando menos por ter atacado
os baianos em geral com um preconceito estúpido do
que por ter feito a elite sentir-se ofendida ao ver seus filhos
chamados de burros -afinal, quem vai para uma escola pública
de medicina dificilmente vem de uma escola pública,
exceto se o ingresso tiver ocorrido pelo sistema de cotas.
PS - Detalhei neste
link a experiência de Taboão da Serra, onde
se desenvolve um projeto de integração escola
e comunidade baseado em Anísio Teixeira, para quem
educador de verdade é aquele que sempre acredita que
todo aluno tem um talento a ser descoberto -o professor deveria
ser um administrador de curiosidades. Anísio foi a
nossa maior inteligência pedagógica -nenhum brasileiro
me influenciou tanto sobre temas educacionais. Há muito
tempo ele dizia que os meios de comunicação
moldariam a aprendizagem. Inventou uma escola (escola parque)
em que saber e fazer se fundiam num único lugar. Pregava
que, sem educação, o desenvolvimento econômico,
político e social brasileiro estaria comprometido,
antecipando-se em mais de 70 anos ao discurso que só
agora vira consenso. Parece até ironia que ele e Antônio
Dantas sejam conterrâneos.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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