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Nada melhorou tanto na cidade de São Paulo como a sua região
central, por onde circulam 2 milhões de pessoas por
dia. O bárbaro assassinato dos moradores de rua é
um acidente de percurso e não deveria simbolizar a
tendência do centro.
Pode-se até dizer que persistem graves problemas e
que ainda levará muito tempo até que sejam resolvidos.
Correto. Mas nenhuma outra ação pública
apresenta um modelo administrativo tão promissor no
município como a revitalização da área
central.
Em termos de gerência de políticas públicas,
é a mais consistente obra de que Marta Suplicy participa,
mas é uma obra que não tem "dono".
Justamente por isso é a mais consistente: envolve uma
complexa teia de vários segmentos dos governos municipal,
estadual e federal, bem como de empresas estatais e, acima
de tudo, da comunidade.
As ruas estão mais limpas e policiadas. Há menos
camelôs devido a uma ação do Ministério
Público, acatada pela prefeitura. Reformaram-se prédios
residenciais e comerciais. Alargaram-se calçadas. Praças
e jardins estão mais conservados com o apoio de empresas
privadas.
Há duas semanas, a cidade ganhou um novo Mercado Municipal,
capaz de se transformar num pólo de gastronomia. Na
terça-feira, ganhou também mais um espaço
cultural, voltado à dança e às artes
plásticas contemporâneas, num prédio abandonado
em que funcionou, no passado, um cinema (Olido). A cem metros
dali, o Sesc comprou um enorme prédio (antiga Mesbla)
para fazer uma unidade com esporte, cultura e lazer.
Graças a esses esforços, somados à infra-estrutura
disponível, a melhoria se traduz em números:
começam a escassear os imóveis disponíveis,
pois a região vem atraindo moradores, empresas e faculdades.
Naquele cenário marcado no final de mês passado
por uma das cenas mais bárbaras da história
social paulistana -a matança dos moradores de rua-,
ocorre, ao mesmo tempo, o melhor exemplo disponível
de articulação comunitária da cidade.
Há 13 anos, um grupo de indivíduos, todos fora
do governo, iniciou um movimento contra a veloz deterioração
da região -um caminho que parecia sem volta.
Chamaram arquitetos e especialistas para estudar as soluções
encontradas em Nova York, Berlim, Roma, Buenos Aires e Barcelona.
Sensibilizaram autoridades para a importância de as
cidades terem os seus centros históricos respeitados.
Conseguiram mudar leis e criar programas de incentivo fiscal.
Na pior das áreas, a chamada "cracolândia",
dominada pelo crack, uma estação de trem virou
uma das mais qualificadas salas de concerto do mundo. O local
em que funcionava o Deops, um dos símbolos da barbárie,
virou um museu. Ali, na terça passada, por exemplo,
foi inaugurada uma exposição com alguns dos
quadros que refletem o que há de melhor na arte moderna
brasileira.
Na frente do antigo Deops, um prédio passou a abrigar
uma escola de música. A poucos metros dali, surgiu,
há alguns anos, a nova Pinacoteca, na frente da qual
a estação da Luz se prepara para ser um memorial
dedicado à língua portuguesa e o local de entroncamento
de vários tipos de transporte. Não é
pouco que um lugar povoado pelo crack comece a se notabilizar
pela beleza das artes.
Essas são apenas intervenções, algumas
das quais em parceria com a iniciativa privada, conduzidas
pelo governo estadual, cujas repartições estão
se mudando para o centro. Montou-se até mesmo um gabinete
do governador.
A Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal
ergueram centros culturais ou apoiaram projetos de reforma
de imóveis; está em reforma, também com
finalidade cultural, a sede dos Correios.
A prefeitura se mudou para o viaduto do Chá e a sua
antiga sede vai virar um museu. Quase todas as secretarias
municipais se mudaram para o centro. Um empréstimo
internacional (BID) assegura que, nos próximos anos,
haverá mais melhorias, como a reforma de parques, viadutos
e praças, além de mais programas sociais.
Se alguém tiver de estudar como uma política
pública pode gerar resultados, basta analisar a engenharia
administrativa do centro. Como tudo o que é consistente,
demora, passa de um governo para outro e, mais, exige as seguintes
peças: comunidade articulada, com apoio acadêmico
e atuação em rede da prefeitura, condutora principal,
com as mais diversas peças do governo estadual e da
União.
O PT de Marta pode se vangloriar dos resultados e não
estará iludindo ninguém. Mas o PSDB de Serra
também pode se orgulhar. Ambos, porém, devem
reconhecer que, sem a mobilização comunitária,
o governo não teria de que se vangloriar. Essa falta
de autoria personalizada explica por que a recuperação
do centro não é um dos principais tópicos
da propaganda eleitoral. É o que de melhor se fez e
o de que menos, por enquanto, se fala.
Na região em que São Paulo nasceu como uma escola,
está sendo produzida a melhor lição de
inteligência comunitária -a começar, aliás,
do revigorado Pátio do Colégio.
PS - Um dos melhores presentes já dados à cidade
de São Paulo foi a coleção de arte moderna
da família Nemirovsky. Cedida à Estação
Pinacoteca, que fica no prédio do antigo Deops, dela
faz parte, por exemplo, o quadro "Antropofagia",
de Tarsila do Amaral, que agora integra a mostra "Mestres
do Modernismo". É, no mínimo, ótimo
pretexto para fazer a visita ao centro e aproveitar para checar
a consistência desta coluna.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo,
na editoria Cotidiano.
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