Algo
que o incomodava naquela paisagem que se revitalizava era
o gigantesco esqueleto abandonado
Como estudava no colégio São Luís, na
avenida Paulista, e morava em Higienópolis, Giovanni
Guido Cerri, quase todos os dias, via seu projeto de vida
estampado na fachada de um conjunto de prédios. Entre
a casa e a escola, estava a Faculdade de Medicina da USP.
"Eu olhava para aquele conjunto arquitetônico com
reverência, imaginando que, se me esforçasse,
faria parte daquela paisagem."
Ontem, ele começou a reescrever seus projetos -e, certamente,
ainda com mais emoção do que a do o calouro
de cabeça rapada.
Filho de imigrantes italianos, Giovanni, nascido em Milão,
passou pelo mais concorrido dos vestibulares e tornou-se professor.
Chegou a diretor da faculdade, quando ajudou a melhorar o
cenário que tanto o impressionava em seus tempos de
adolescência. Foi um dos responsáveis pela reforma
das instalações da faculdade, que, graças
à recuperação das fachadas, expôs
um charme arquitetônico quase desconhecido de quem passa
pela rua -um charme hoje mais visível à noite,
com a nova iluminação.
Algo que o incomodava naquela paisagem que se revitalizava
era o gigantesco esqueleto abandonado por muitos anos, parado
por causa da indefinição de diferentes governos
sobre o que fazer ali. "Era como se fosse uma mancha
suja." Sintoma da doença da incompetência
governamental, o esqueleto dificilmente poderia ser mais visível.
Localizava-se no espigão da Paulista.
Até então, as conquistas de Cerri poderiam
parecer ousadas, mas razoavelmente previsíveis. Veio
de uma família de classe média alta e estudou
em boas escolas, o que lhe dava plenas condições
de entrar na medicina da USP, de ser professor e até
diretor. Mas o que surgiu de sua relação com
aquele esqueleto saiu do campo da previsibilidade.
Para tentar acabar a obra e definir o hospital -inicialmente
voltado para a saúde da mulher, depois para transplantes
e, mais tarde, para oncologia, além disso tudo-, o
governador José Serra perguntou a Cerri o que ele achava
de focar apenas em tratamento de câncer. O médico
propôs então que o centro fosse dedicado não
apenas ao tratamento mas também ao ensino e à
pesquisa - a idéia recebeu apoio no meio acadêmico,
o que desentravou os impasses.
O esqueleto era apenas memória ontem, quando foi inaugurado
o Instituto do Câncer Octavio Frias de Oliveira, onde,
além do tratamento, se farão pesquisas de ponta,
inclusive com o desenvolvimento de novos remédios.
Ontem, Cerri via de outro ângulo, agora por dentro,
o prédio que tanto o incomodava arquitetonicamente.
Foi apresentado como o primeiro diretor-geral do Instituto
do Câncer, de cuja paisagem agora ele faz parte.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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