Cultivamos
uma vaga sensação de que sempre estamos em dívida
com os nossos filhos
Psiquiatras relatam há tempos sobre o aumento do número
de crianças e adolescentes das classes média
e alta com sintomas de depressão -cansaço, irritabilidade,
insônia, abatimento, tristeza, vontade de não
sair do quarto. "As queixas são generalizadas",
afirma Magda Carneiro Sampaio, professora de pediatria na
USP e presidente do Instituto da Criança, ligado ao
Hospital das Clínicas. Fala-se até que estariam
aumentando as tentativas de suicídios. Por isso, fiquei
intrigado com um estudo da Universidade de Michigan (EUA).
Abatimento e tristeza não seriam necessariamente um
problema, mas um sinal de saúde mental.
Se não forem, porém, percebidos como alerta
e tomadas providências, corre-se o risco de uma depressão
grave, com efeitos devastadores -e, então, agrava-se
o risco de abusos de álcool e drogas. Segundo o estudo,
o abatimento, confundido com depressão, seria uma determinação
do cérebro para que os indivíduos parem, ganhem
energia e se adaptem à realidade, que, em alguns momentos,
exige além dos limites. A depressão leve sugeriria
que se tire um tempo de tantas tarefas.
O autor da pesquisa, Randolph Ness, psicólogo especialista
em biologia evolucionista, sustenta que o ser humano, no seu
esforço de sobrevivência, é dotado da
capacidade de perceber que determinadas tarefas são
inviáveis. A depressão leve seria a hora de
parar, repor as energias e se adaptar a desafios viáveis.
Tradução: excesso de persistência em determinadas
metas, desconsiderando o cansaço, geraria desequilíbrios.
Isso explicaria, pelo menos em parte, por que sociedades muito
exigentes no desempenho na escola e no trabalho -EUA e Japão,
por exemplo- apresentariam maior taxa de depressão.
No Japão, é conhecida a alta incidência
de suicídios entre estudantes.
Expus essa visão aos psiquiatras infantis Pilar Lecusan
Gutierrez e Wagner Rana, que concordam com o diagnóstico
de que cresce o número de crianças e jovens
chegando aos consultórios com distúrbios psicológicos,
muitos deles vítimas do excesso de expectativa da família
e da sociedade. Mas atribuem parte da culpa aos pais.
Pilar afirma que a busca exagerada pelo desempenho faz com
que os pais montem uma agenda de executivo para as crianças.
Desde pequenas, começam a ser educadas para entrar
nas melhores faculdades. Para piorar, segundo ela, há
uma tentação de medicalizar as crianças
em nome do desempenho na escola.
Muitas vezes, se vê a tristeza como uma anormalidade
porque se valoriza a pressa e o fazer. "Natural que,
nesse ambiente, muitas crianças e jovens fiquem desorientados
e acabem num consultório", afirma Pilar.
Wagner Rana acredita que os pais que protegem demais os filhos
acabam emitindo sinais contraditórios. O excesso de
proteção, na visão do psiquiatra, dificulta
o desenvolvimento da autonomia e, portanto, da habilidade
de lidar com frustrações e desafios.
O fato é que os pais estão desorientados, como
se estivessem abandonados.
Erramos por proteger em excesso. Mas nos sentimos culpados
se não o fizermos, como se estivéssemos abandonando
os filhos. Temos a sensação de que, nos nossos
tempos, não havia tantos perigos: as ruas eram menos
violentas, a família quase sempre, ao menos em um dia,
estava reunida. Não se falava em sequestro relâmpago.
Não queremos ser repressivos como nossos pais e corremos
o risco de virar adolescentes adultos. Sabemos que a liberalidade
pode significar falta de limite. Não entendemos direito
como os jovens usam os meios de comunicação
porque crescemos em ambientes presenciais, e não virtuais.
Ficamos desorientados diante de fenômenos como o "sexting",
a moda das jovens enviarem, por celular, suas fotos nuas ou
seminuas.
Antigamente, para saber quem eram as más companhias
-e os pais sempre imaginavam que conheciam essa figura-, bastava
olhar quem frequentava a casa. Hoje, provavelmente elas estão
em alguma rede da internet. Ou assim se imagina.
Antes, quando as crianças não aprendiam, eram
acusadas de preguiçosas ou displicentes; agora, a culpa,
em boa parte, é da escola e dos pais. Quando se perguntava
o "o que-você-vai-ser-quando-crescer?", tinha-se
a presunção de que, no futuro, haveria emprego
para quem estudasse.
Também se conheciam todas as profissões que,
no futuro, estariam lá; as atividades profissionais
não surgiam nem desapareciam com tanta rapidez.
Olhando para trás, tenho a sensação
de que os pais não tinham dúvidas de como ser
um bom pai. Bastava, em essência, alimentar, colocar
na escola e garantir as férias; a mulher ficava a cargo
do afeto explícito.
O Dia dos Pais era a chance de mostrar uma espécie
de dívida de gratidão. No complexo de pai abandonado,
cultivamos uma sensação de que sempre estamos
em dívida com os filhos.
PS - O que não mudou é que, após ficarmos
mais velhos, descobrimos que nossas maiores alegrias e fontes
de realização estão ligadas aos filhos.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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