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O bairrismo , embora seja associado
a uma visão pequena, atrasada e provinciana, está
entrando na moda.
Prospera nas regiões metropolitanas
o efeito "casulo". Inseguras no trânsito,
sentindo-se ameaçadas pela violência, incomodadas
com os pedintes que se avolumam a cada esquina, famílias
de classe média e alta tentam se locomover o menos
possível e se esforçam para fazer do bairro
uma espécie de país independente, capaz de satisfazer
todas as suas necessidades.
Isso significa que, na geografia do
medo, comprar, divertir-se ou escolher a escola dos filhos
está cada vez mais condicionado à proximidade
do lar. Quanto mais perto, melhor; quanto mais longe, mais
ameaçador.
O efeito "casulo" é
visível numa pesquisa realizada pela InterScience com
habitantes de classe média e alta da cidade de São
Paulo, que foi concluída na semana passada,
Ao comprar um imóvel, 80% dos entrevistados informam
que levam em conta a auto-suficiência do bairro, de
olho na variedade de serviços e de lojas.
Cerca de 70% dos entrevistados querem
fazer suas compras perto de casa; 65% não querem ir
longe para se divertir e, se puderem, optam pelos cinemas
e teatros do bairro.
Na hora de escolher a escola dos filhos,
nada menos que 80% usam o critério geográfico.
Ou seja, a boa escola é aquela que, antes de mais nada,
está perto e não deixa as crianças presas
no trânsito. Para o adolescente, viver longe é
ficar distante também dos amigos, já que quase
todos moram nos arredores da escola. O bairro passa a ser
o cenário quase auto-suficiente da construção
das identidades individuais.
Combinando limitação
provinciana com caos metropolitano, o efeito "casulo"
é consequência da degradação das
grandes cidades brasileiras, tão visível nas
pilhas de estatísticas divulgadas na últimas
três semanas. Na segunda-feira, estudo da ONU exibiu
o crescimento acelerado do número de favelados, bem
maior do que o aumento da população. Na sexta-feira,
o IBGE divulgou mais dados sobre a deterioração
dos empregos e dos salários. Na semana anterior, divulgaram-se
estatísticas que mostram como as grandes cidades caíram
rapidamente no ranking de qualidade de vida.
A crise explode principalmente nas
maiores cidades e, principalmente, nas regiões metropolitanas.
Não é à toa que os eleitores, acuados
em cada esquina, começam a se interessar mais por assuntos
locais, provincianos, do que por temas nacionais, distantes,
abstratos. O cotidiano dos indivíduos é, em
larga medida, o que acontece na cidade. É uma nova
dimensão da política brasileira, com a valorização
do local.
Apesar do barril de pólvora metropolitano, a temática
urbana não faz parte das prioridades federais brasileiras.
Alguém tente lembrar-se de
alguma ação consistente dos ex-presidentes,
a começar de Fernando Henrique Cardoso, nascido no
Rio e criado em São Paulo, para melhorar as grandes
cidades em parceria com governos estaduais e prefeituras.
Pouco, para ser benevolente, vai encontrar. Tente também
procurar algum discurso de Lula com propostas para as regiões
metropolitanas. Alguém já ouviu alguma palavra
inspiradora de Olívio Dutra, o ministro das Cidades?
Fala-se muito mais dos sem-terra,
que fazem parte da agenda do passado, do que do caos urbano,
o grande gargalo político do futuro. É na cidade
que hoje mora a maioria dos sem-tudo, o que agrava as tensões.
Mais uma vez, como se viu na semana passada, estudantes agitaram
Salvador, o que, vou repetir, é apenas um aperitivo
do que vai, mais cedo ou mais tarde, se espalhar pelo país.
É mais do que óbvio
que o país precisa urgentemente de uma agenda para
as regiões metropolitanas. Urbanistas recomendam que,
em cada região, sejam criadas comissões com
representantes estaduais, federais e municipais para traçar
políticas coordenadas de investimento em infra-estrutura
urbana e de racionalização dos investimentos
sociais.
Nossas metrópoles e seus problemas
são gigantes, mas a visão dos políticos
sobre temas urbanos é pífia. Uma das poucas
idéias que me chamaram a atenção nos
últimos tempos -e se é viável não
sei- é transformar a região metropolitana de
São Paulo em novo Estado. Para a prosperidade do Brasil,
um região tão vital, centro econômico
e financeiro, não deveria ser tão frágil
socialmente. O mecanismo político que aí está
simplesmente não está funcionando.
PS - Por falar em crise social, temos
pouco a comemorar neste Dia da Criança. Há,
porém, uma chance de boa notícia. Está
sendo elaborado, ainda reservadamente, no governo federal
um plano interministerial, a ser divulgado neste mês,
com foco na criança e no adolescente. Há metas
e prazos definidos. Há muito se batalha para quebrar
a fragmentação de políticas sociais.
Para acompanhar o andamento do plano (verificar se sai ou
não do papel) e evitar que vire uma peça de
marketing, será lançada com ele uma rede independente
de dezenas de entidades não-governamentais e de organismos
internacionais para monitorar periodicamente as ações.
Coluna originalmente publicada
no jornal Folha de S. Paulo, aos domingos
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