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Desde
o início dos anos 90, homicídios caíram
de 360 por 100 mil habitantes para 39
Governos nacional, estadual e municipal se uniram contra
o narcotráfico, os paramilitares e as guerrilhas, entre
elas Farc e ELN
Cantora e professora de música para crianças,
Patrícia Cardona, uma ruiva de cabelos encaracolados
e olhos esverdeados, engoliu, na manhã de 30 de setembro
de 2002, uma série de grossas cápsulas de heroína,
meticulosamente embrulhadas com películas de borracha
para que não abrissem em seu estômago. Preparava-se
para duas experiências inéditas e simultâneas
em sua vida: conhecer Nova York e entrar para o narcotráfico.
Receberia cerca de US$ 3 mil pela missão.
Antes de embarcar, foi flagrada e teve de cumprir 26 meses
numa prisão feminina. "Eu tremia tanto que, no
meu desespero, pensei que as cápsulas iriam se romper."
Até então, ela estava cheia de fantasias românticas.
Iria andar pelas ruas no outono de Nova York, com seus parques
de folhas avermelhadas pelo chão e clima ameno, ao
lado de seu namorado, que, como ela, carregava, naquele dia,
a droga escondida no corpo. E que também foi preso.
Cardona continuou a ser professora na prisão. Recebia
todas as semanas estudantes de escolas de Medellín
e contava-lhes sobre o risco de entrar para o narcotráfico.
No final, para não perder o hábito, acabava
tocando e cantando músicas que compôs sobre suas
desventuras. Desde a prisão, acabou o namoro e, até
agora, não se dispôs a uma nova relação.
"Uma coisa é um pai, uma mãe ou um policial
falar sobre o risco das drogas. Outra, muita diferente, são
meninos e meninas verem e ouvirem alguém dando seu
próprio testemunho dentro da cadeia." Ela já
está livre, mas continua com suas palestras cantadas
e sobrevive ensinando violão e flauta para crianças.
Capital mundial
As palestras de Cardona aos jovens, a maioria deles de escolas
públicas, eventuais candidatos a "mulas",
nasceram com o programa "Delinqüir não vale
a pena" e integram um dos mais extraordinários
exemplos de ofensivas contra a violência de que se tem
notícia.
No início dos anos 1990, a taxa de homicídio
de Medellín, segunda maior cidade colombiana, com 1,8
milhão de habitantes -a região metropolitana
tem 2,8 milhões-, era de 360 por 100 mil habitantes.
Entende-se o que significa isso comparando com a cidade de
São Paulo, onde ela é de 25 por 100 mil, ou
seja, 14 vezes menor. Não havia nenhum lugar do planeta,
mesmo os conflagrados pela mais feroz das guerras, que remotamente
se aproximasse da violência daquela cidade colombiana,
centro de operação do narcotráfico e
seus assassinos profissionais mesclando-se diferentes organizações
guerrilheiras de esquerda, grupos paramilitares e gangues
de adolescentes. Daí ter ganho o nada honorífico
título de "capital mundial da violência".
Apenas recentemente, estudiosos de várias partes do
mundo, especialmente do Terceiro Mundo, estão chegando
para tentar entender como eles conseguiram baixar de 360 para
39 homicídios por 100 mil habitantes -índice
ainda elevado, mas substancialmente menor e caindo ano a ano.
É uma queda de quase 90%, notadamente veloz nos últimos
três anos. "Medellín é um dos melhores
laboratórios de paz de todo o mundo", afirma Martha
Laverde, colombiana, especialista em educação
do Banco Mundial.
O exemplo de Nova York
É um caso bem mais profundo do que o ocorrido em Nova
York, onde um ex-prefeito (Rudolph Giulianni) chegou a ser
cogitado como ganhador do Nobel da Paz pela redução
dos índices de homicídio, atualmente em 7 por
100 mil habitantes. Além de Medellín ter a multiplicidade
de fontes de violência de narcotraficantes, gangues
de jovens, guerrilheiros e paramilitares, há os indicadores
sociais, típicos latino-americanos. A taxa de pobreza
é de 40% e o desemprego entre jovens, nos bairros mais
desolados, chega a 70%. Lá estão as incubadoras
para a formação de assassinos profissionais,
conhecidos como "sicários", e para as "mulas",
como a cantora Cardona, dispostas a traficar a droga para
Estados Unidos e Europa.
A ofensiva dos governos nacional, estadual e municipal resultou
no ataque ao narcotráfico, onde imperava o mítico
Pablo Escobar, na desmobilização dos paramilitares,
no enfraquecimento das guerrilhas das Farc (Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia) e da ELN
(Exército de Libertação Nacional). "Se
tivéssemos tanta descoordenação entre
as forças policiais como vocês, no Brasil, já
teríamos desaparecido do mapa", diz o jornalista
Alonso Salazar, impressionado com os debates e as disputas
que testemunhou, entre autoridades brasileiras, por causa
do PCC.
Jornalista investigativo, seu tema era o submundo de Medellín,
o que o levou a acompanhar de perto os movimentos dos principais
personagens da cidade. "Aprendi como funcionava a hierarquia
do crime, especialmente nas favelas." Foi chamado para
ser um dos principais assessores da prefeitura, onde, com
seu conhecimento de repórter, ajudou a articular um
plano de segurança -e, agora, se candidata para ser
prefeito, no próximo ano.
Comuna 13
O símbolo máximo do caos era a Comuna 13 -um
conglomerado de 25 favelas que se espalhavam pelas montanhas
que cercam Medellín e produziam o grosso da violência.
Não havia poder público e, para subir lá,
só com autorização. Numa operação
de guerra, o Exército ocupou a região e instalou
bases militares. Puderam, então, chegar educadores,
assistentes sociais e policiais comunitários.
Com o policiamento comunitário, as pessoas se sentiram
mais confortáveis para denunciar os matadores, o que
diminuiu a sensação de impunidade. Não
apenas se treinaram melhor os policiais, mas se capacitou
a comunidade sobre como lidar com a questão da segurança.
Surgiram, voluntariamente, os "vigilantes do bairro",
cuja missão é apenas informar as autoridades
sobre movimentos suspeitos.
Disseminou-se a figura do mediador de conflito: alguém
de respeito no bairro apto a intermediar disputas entre moradores.
Disputas que, numa situação "normal",
acabariam em pancadaria. Neste ambiente, diminuíram-se
as resistências contra a campanha de desarmamento. "O
essencial é que eles estão combinando, na medida
certa, ações repressivas com preventivas",
analisa Laverde, do Banco Mundial.
Jovens envolvidos na marginalidade foram convidados a trabalhar
como educadores e recebem um salário para manter a
ordem na cidade. Jhon Albeiro Yalí já tinha
passado um ano na prisão por causa da guerra de gangues.
Hoje, ele, uniformizado de chapéu e camiseta azul,
orienta pedestres a se prevenirem de acidentes de trânsito.
"Sem isso, eu não teria perspectiva", orgulha-se.
"Precisávamos trabalhar a auto-estima da população",
diz Alonso Salazar. "Achávamos que a violência
era, além de um reflexo da impunidade, uma indicação
da falta de auto-respeito."
Muitas vezes, eram os grupos marginais que ofereciam proteção
e assistência social, disfarçando-se de poder
público.
A força da biblioteca
Além das medidas repressivas, preventivas e educacionais,
implementaram-se reformas urbanas nos bairros mais pobres,
alguns deles nas montanhas, totalmente isolados. Construíram-se
escadas, promoveu-se a coleta do lixo, escolas foram ampliadas,
abriram centros de saúde e ofereceu-se um sistema de
transporte -em alguns casos, de teleférico.
Para acompanhar, em detalhes, a evolução de
cada indicador, nasceu um entidade civil chamada "Como
Vamos Medellín", cujos resultados são amplamente
divulgados pela mídia. É uma espécie
de termômetro para medir qualidade de vida, em que se
contabilizam desde seqüestros, roubos, furtos até
evasão escolar, gravidez precoce, renda dos trabalhadores
e desemprego.
Neste momento, estão construindo numa das regiões
mais pobres uma imensa biblioteca, em meio ao verde para servir
de ponto de encontro tanto quanto de leitura. A idéia
é que, em cada bairro, o principal centro seja uma
biblioteca. "Achamos que quem gosta de ler não
gosta de matar", aposta Salazar.
Coluna
originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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