Iniciada há quatro anos na
cidade de São Carlos, no interior de São Paulo,
uma experiência está conseguindo inventar uma
vacina contra a violência e reduzir os níveis
de delinqüência juvenil.
Consultei diferentes técnicos, acadêmicos e dirigentes
de entidades não-governamentais. Consideraram a experiência,
em maior ou menor grau, uma fonte de inspiração
para evitar que o jovem entre no círculo vicioso da
delinqüência. "É um caso de inegável
sucesso", afirma o presidente da Fundação
Abrinq, o advogado Rubens Naves, um dos maiores estudiosos
brasileiros do tema da privação de liberdade
entre crianças e adolescentes. É fácil
entender a unanimidade em torno da "vacina" de São
Carlos.
A taxa de reincidência criminal dos adolescentes atendidos
naquela cidade é de 2,7%; a média paulista é
de 33%. O número de roubos cometidos por eles caiu
70%; o de homicídios despencou 86%.
Tais informações parecem até milagrosas
(ou mentirosas) quando confrontadas com as crônicas
imagens, reprisadas na sexta-feira, de rebeliões de
adolescentes presos na região metropolitana de São
Paulo. "Todos temos de aprender com eles", diz o
historiador José Fernando da Silva, presidente do Conanda
(Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente),
entidade que reúne representantes dos principais ministérios
sociais e de organizações da sociedade. "Não
há dúvida de que eles têm o mapa da mina",
afirma o presidente da Febem paulista, Alexandre de Moraes.
Não há, porém, nenhum milagre nem mentira,
mas apenas a execução do óbvio.
A história começou numa tragédia. Em
outubro de 1999, o padre salesiano Agnaldo Soares Lima e o
juiz da infância João Baptista Galhardo, ambos
de São Carlos, estavam em São Paulo, quando
explodiu uma rebelião gigantesca nas instalações
da Febem que fica localizada nas proximidades da rodovia dos
Imigrantes. "Foram cenas de terror", lembra-se Agnaldo,
que, com o juiz, tentou ajudar os jovens de São Carlos
que estavam presos.
Ao voltarem para casa, o juiz e o padre estavam decididos
a fazer algo em São Carlos que funcionasse na prevenção
à delinqüência juvenil.
Sensibilizaram políticos, associações
comunitárias e empresários locais. Articularam,
então, uma aliança entre a prefeitura e a Febem
para a criação de um projeto experimental, batizado
de NAI (Núcleo de Atendimento Integrado), que viria
a funcionar em 2001, durante a gestão do PT, cujo prefeito
(Newton Lima Neto) foi reeleito no ano passado.
A criança deveria ser atendida e encaminhada com rapidez
a uma rede integrada de serviços. Um acordo com o Poder
Judiciário assegurou que a prisão, administrada
pela Febem em São Carlos, deveria ocorrer só
em último caso. Antes disso, seriam oferecidas penas
alternativas, como a liberdade assistida, a semiliberdade
e a prestação de serviços comunitários.
"Um dos pontos essenciais é que a primeira coisa
que fazemos é envolver a família", informa
o padre Agnaldo.
O NAI é uma porta de entrada para o jovem infrator,
onde ele, em poucos dias, toma conhecimento da pena. A rapidez
reduz a sensação de impunidade.
A agilidade ocorre em razão da integração
dos serviços. Num único espaço, estão
juiz, delegado, promotor, defensor público, conselheiro
tutelar e assistente social.
Soma-se à rapidez da sentença uma rede de serviços
para a execução de medidas educativas. Também
estão no prédio do NAI representantes das secretarias
da Educação, da Cultura, da Saúde e dos
Esportes, além de entidades assistenciais da comunidade.
Toda essa rede é algo que poderia ser comparado com
um "poupa-tempo", em que se tiram, sem mudar de
repartição, os mais diversos documentos.
Crianças e jovens são divididos em pequenos
grupos. A prisão, administrada pela Febem, tem capacidade
para 15 internos. "Conhecemos todos pelos nomes",
afirma padre Agnaldo.
Esse atendimento a grupos pequenos e personalizados facilita,
por exemplo, que se tente integrar o jovem à escola
regular, o que, entretanto, nem sempre é fácil,
pois muitos professores têm dificuldade de lidar com
esse tipo de aluno e as escolas não sabem como incluí-lo.
"Aprendi que o jovem reage de acordo com forma como é
encarado. Se for visto como um malandro, ele se comportará
como um malandro", analisa Agnaldo.
Há uma série de lições a serem
extraídas dessa experiência. Muitas delas são
óbvias: o papel da família, a oferta de apoio
da comunidade, a articulação em rede dos serviços
públicos, a ênfase na prevenção
e na educação.
A mais importante das lições é a seguinte:
o sucesso está na gestão liderada do âmbito
local, centrada na prefeitura. Se os prefeitos não
assumirem seu papel na produção de capital social,
nunca teremos "vacinas", teremos apenas venenos.
PS - Foram necessários anos de rebeliões para
o governo estadual anunciar, na sexta-feira, o óbvio:
o fim das grandes unidades prisionais. Reformar aquelas estruturas
é tão eficiente para afastar o mau cheiro quanto
espargir perfume no lixo.
Coluna originalmente publicada na Folha
de S. Paulo, na editoria Cotidiano. |