Mano
Brown e Ferréz ajudaram a transformar uma boca-de-fumo
na zona sul de São Paulo em biblioteca
Frequentada por adolescentes, uma casa dentro da favela Sabin
(os moradores pronunciam "Sabín") servia
de "boca" para distribuição de drogas
na zona sul de São Paulo.
Há dois anos, aquele espaço se transformou num
laboratório de testes para a aplicação
de uma vacina contra a violência. Saíram as drogas,
entraram os livros.
O rapper Mano Brown e o escritor Ferréz, cujas músicas
e textos traduzem a marginalidade da periferia metropolitana,
fizeram daquele ponto de tráfico uma biblioteca, que
recebe, diariamente, cerca de 120 crianças e jovens
e atualmente tem um acervo de 2.000 livros.
Nessa metamorfose de drogas em livros há uma questão
essencial a ser tratada nas eleições municipais
-pelo menos, isso é o que sugere uma pesquisa do Datafolha.
A pesquisa do Datafolha informa que os eleitores paulistanos
estão convencidos de que o prefeito deve saber inventar
esse tipo de vacina para curar a doença da violência.
Estariam iludidos ou desinformados sobre os limites da ação
de um governante? A experiência de Mano Brown e de Ferréz
mostra que os eleitores podem até estar iludidos sobre
os poderes de um governante, mas não estão desinformados.
Na lista de angústias do paulistano, a segurança
aparece, de acordo com o Datafolha, em primeiro lugar (19%).
A preocupação cresce ainda mais dependendo da
renda do entrevistado -chega ao patamar de 20% a 23% entre
os que têm maior poder aquisitivo. Esse problema é
bem maior do que o propalado incômodo com o trânsito.
Na visão dos eleitores, portanto, o prefeito, apesar
de não comandar a PM e a Polícia Civil, deve
ter como seu grande desafio ajudar a criar uma cidade em que
seus habitantes não se sintam tão vulneráveis,
ameaçados de perigo a cada esquina.
A segurança não deveria ser uma tarefa quase
exclusiva do governador? Não.
Até para uma nação acostumada com as
cenas da barbárie urbana, chocou a informação
de que militares que cuidavam da segurança de uma favela
no Rio de Janeiro entregaram jovens a traficantes rivais para
receberem punição.
É como se a "poliomielite" da violência
fosse paralisando qualquer instituição. Nem
o Exército estaria vacinado contra esse mal. O que
se vê é que, depois de atingir certo grau da
doença, nem mesmo a terapia da força funciona.
Daí certamente o incômodo da opinião pública.
A raiz do problema está menos na ineficiência
policial do que na inaptidão de as crianças
e jovens se imaginarem com perspectivas. Não há
dúvida de que parte dessa inaptidão resulta
de carências locais é a falta de centros de saúde,
de espaços para lazer e cultura, de programas de assistência
social.
Basta ver a informação divulgada na sexta-feira
pelo Ministério da Educação sobre a qualidade
do ensino nos municípios brasileiros.
As escolas nas regiões metropolitanas perdem das escolas
do interior, onde costuma existir maior capital social, ou
seja, uma convivência mais pacífica e produtiva
entre seus habitantes. O professor não é um
anônimo, mas um personagem reconhecido e admirado pela
comunidade; a família é mais próxima
dos filhos. Baixo capital social se traduz em baixa visibilidade
dos indivíduos, que vivem em permanente anonimato.
O sindicato dos professores de São Paulo fez greve,
na semana passada, pelo direito de os professores continuarem
trabalhando em alta rotatividade e conseguirem se transferir
rapidamente de uma escola.
É mais uma reação à violência
que cria um círculo vicioso. Quanto maior a rotatividade
de professores e diretores, mais difícil criar uma
equipe capaz de fazer os alunos e suas famílias valorizarem
a escola.
Uma prova disso está no município de Taboão
da Serra -mais uma daquelas paisagens desoladoras na região
metropolitana brasileira. Lá se inventou a figura do
"professor visitador", que ganha um bônus
para ir à casa da família dos alunos. A visita
tem mudado o olhar dos pais e das crianças sobre a
escola. Resultados já medidos: melhores notas e menor
evasão.
Há sinais preliminares de que esse fenômeno se
repete na periferia de Belo Horizonte, onde alunos da rede
municipal participam de atividades complementares comandadas
por universitários em algum espaço do bairro
um parque, por exemplo.
A pesquisa do Datafolha traduz-se da seguinte forma: o eleitor
está esperando que o prefeito seja um grande articulador
de planos federais, estaduais e municipais para reduzir a
sensação de desamparo. No fundo, querem algo
parecido a converter uma boca de drogas em biblioteca. O problema
é que, na administração pública,
muitas vezes se converte uma biblioteca em algo tão
degradado como um ponto de tráfico -se você imagina
que eu estou exagerando, visite bibliotecas de colégios
da periferia.
PS - Na semana passada, a Secretaria Municipal da Saúde
de São Paulo divulgou números que mostram ser
a probabilidade de morrer no trânsito idêntica
à de morrer assassinado. Daí se tem uma noção
da vulnerabilidade do cidadão em São Paulo.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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