Nenhuma
atriz brasileira veio de tão baixo e subiu tão
alto quanto Sandra Corveloni, eleita melhor atriz em Cannes
O desfecho previsível da vida de Sandra Corveloni seria
a derrota profissional -migrante, filha de pais quase sem
escolaridade, moradora da periferia de São Paulo e
estudante de escola pública. Mas nenhuma atriz brasileira
veio de tão baixo e subiu tão alto em reconhecimento
internacional. Como ela ultrapassou tantas barreiras para
ser eleita, na semana passada, a melhor atriz no Festival
de Cannes?
Apenas o seu talento não explicaria esse desfecho.
Nem a habilidade de seus diretores, Walter Salles e Daniela
Thomas, no filme "Linha de Passe", em que Sandra
é uma mãe enfrentando as agruras da periferia,
onde a falta de perspectiva transforma o futebol num dos poucos
sonhos disponíveis aos jovens. Para ir tão longe,
Sandra precisou colocar-se, na própria vida, na linha
de passe desde menina, ela precisou se meter num roteiro de
aprendizados.
O caso dela me levou a tentar comprovar o que tenho observado
em personagens periféricos que se destacam profissionalmente:
além do talento e da força de vontade acima
da média, existem sempre fortes referências familiares
associadas ao prazer ou à importância do aprender.
Pedi-lhe que contasse sobre as figuras marcantes de sua vida.
Sobressaiu a imagem do avô, José Crepaldi, agricultor,
pobre, que pouco freqüentou a escola, mas vivia agarrado
a um grosso livro de veterinária. "O livro e meu
avô eram quase inseparáveis. Era a sua bíblia."
Lia e observava, curioso, como os veterinários profissionais
tratavam os animais. Gravava o nome dos remédios e
dos tratamentos.
Aquele agricultor, mesmo sem escolaridade, virou um veterinário
autodidata e começou a ganhar alguns trocados porque
era chamado para tratar de animais. A menina carregou para
sempre a imagem do avô, em deleite, agarrado ao livro
esgarçado. O velho morreu pobre -mas realizado.
Clarice, a mãe de Sandra, nunca foi à escola,
mas também trouxe de casa - ela já observava
o pai encantado com a veterinária- a importância
do conhecimento. Do seu jeito, ela percorreu a mesma trajetória
do prazer em aprender: inventava receitas, criava modelos
de roupas ou construía móveis. "Minha mãe
sempre tinha uma história para contar de alguma coisa
que ela tinha feito." Nem que fosse a adaptação
de uma receita de bolo que ouvira no rádio ou na televisão.
Exigia que a filha estudasse e que as lições,
que lhe eram incompreensíveis, estivessem bem-feitas.
Sandra não precisava receber cobranças. Lembra-se
de uma professora da primeira série, chamada Dona Gema,
que dava ares de festa para a escola. Ensinava cantigas de
roda, contava histórias tiradas de livros coloridos,
convertia papel e cola em peças de arte. Durante toda
a sua trajetória em escola pública, sempre participou
do que lhe ofereciam: grêmio, dança, coral, gincana,
teatro, jornal.
Todo esse entusiasmo cultural dava-lhe satisfação,
mas dificilmente seria fonte de renda. Ingressou num curso
técnico gratuito do Senai e, depois, entrou numa faculdade
de engenharia, algo que nem remotamente seria acessível
a qualquer pessoa de sua família. Não era o
suficiente. Podia ter parado aí, com salário,
carteira assinada, e já estaria muito bem.
Sua paixão estava na carreira de atriz, descoberta
desde que participou de oficinas gratuitas no Sesc. A ex-futura
engenheira química preferiu o palco e partiu para estudar
teatro no Tuca. Fez de tudo para sobreviver. Até animação
de festinha infantil. Possivelmente ser a estrela reconhecida
em Cannes era, até a semana, passada, uma possibilidade
tão remota quanto seu avô, autodidata, ter sido
tratado como doutor.
Além do reconhecimento artístico, o prêmio
serve como condecoração ao prazer de se reinventar
de uma menina que ganhou holofotes em Cannes, mas cujo futuro
começou a ser escrito com palavras científicas
de um obscuro livro de veterinária.
PS- Para participar do filme "Linha de Passe",
Sandra teve de voltar a morar na periferia. Viu e sentiu a
desesperança dos jovens, fora da linha de passe, morando
em ambientes esgarçados - estão mais próximos
da linha de tiro. Isso ajuda a explicar o inferno das escolas,
onde professores são vítimas da violência
cotidiana de tentar ensinar indivíduos sem perspectiva,
muitos dos quais nunca viram um adulto perseguindo um projeto
e apostando no conhecimento. Como estamos metidos numa espécie
de guerra civil, reflexo da marginalidade juvenil, o caso
de Sandra é um roteiro que mostra que o combate à
violência começa com a possibilidade de que cada
indivíduo se sinta capaz de descobrir um talento, o
que começa na família e prossegue na escola.
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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