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Parece
até uma conspiração para mostrar, numa
dimensão inédita, os perigos da delinquência
juvenil. Nem superamos ainda a comoção pelo
assassinato do casal de namorados, somos tomados de assalto
por mais uma selvageria que envolve um adolescente -dessas
de filmes de terror inverossímeis.
Na quinta-feira, Leonardo José Pereira morreu, baleado
pela polícia, por participar de um dos mais perversos
sequestros de que se tem notícia ultimamente.
No prontuário de Leonardo
na Febem, está o registro de posse ilegal de arma.
Mas ele foi solto e enquadrado na condição de
"liberdade assistida": ficaria na rua, longe da
prisão, desde que se submetesse a programas oficiais
para integrá-lo à sociedade.
Encontrou "assistência"
não no poder público, mas numa quadrilha de
sequestradores que manteve refém por 53 dias um homem
de 81 anos, alimentado a cada dois dias. Joaquim Ferreira
Dias, a vítima, não teve o direito nem de usar
o banheiro ou de tomar um simples banho, reduzido à
condição de animal, vivendo em meio a fezes
e urina.
A polícia chegou, na quinta-feira
de madrugada, a um bairro da zona sul de São Paulo
para libertar o refém, que tinha as mãos presas
a um botijão de gás e os pés amarrados.
Encontrou e eliminou Leonardo, segurança do cativeiro
-que não teve direito à maioridade na vida.
Naquela mesma quinta-feira em que Leonardo morreu, a polícia
descobriu que era um adolescente de 15 anos o assassino de
uma estudante universitária na zona leste. O adolescente
baleou na cabeça a estudante Cristiane Matheus Pernias,
de 21 anos, para tirar-lhe o carro.
Esses três adolescentes criminosos que, em menos de
duas semanas, apavoraram e comoveram todo o país, estimularam
o ambiente favorável ao extermínio.
De verdade, a sociedade implícita ou explicitamente
não quer reduzir a maioridade penal; quer exterminar
os jovens bárbaros, seja enfiando-os num prisão,
seja matando-os.
A apresentadora Hebe Camargo apenas
expressou a vontade coletiva quando, na semana passada, disse
que, se pudesse, faria "linguiça" de Xampinha.
Aplaudida entusiasticamente, ela disse o que faria numa entrevista
com o adolescente: "Se me deixarem, eu vou, mas vou armada.
Eu saio de lá e vou para a cadeia. Mas ele não
fica vivo".
Demonstrando senso de oportunidade, o governador Geraldo Alckmin
saiu-se bem no noticiário ao levar a Brasília
proposta de endurecimento das leis contra os menores infratores.
Aderiu ao time do ilusionismo -seja por convicção,
seja pela vocação dos políticos para
gerar fatos que aplaquem comoções.
Sintomaticamente, as pessoas se interessaram muito mais pela
mudança das leis, algo que depende de longas negociações
congressuais e cujos resultados são no mínimo
discutíveis, do que pelos debates sobre a reengenharia
da Febem de São Paulo.
Está diminuindo o espaço
de racionalidade. O problema essencial é que somos
vítimas de gente que também é vítima.
Se não tivermos a capacidade de lidar com essa incômoda
obviedade, não vamos a lugar nenhum. Ou melhor, vamos:
vamos disseminar, para sempre, a cultura inútil do
extermínio.
Se fosse mais atenta às causas da violência,
a opinião pública evidentemente não diria
que o governador é o principal culpado da violência,
acusando sua polícia de inepta -afinal, estamos pagando
por séculos de descuido social combinados com as últimas
décadas de baixo desenvolvimento econômico. Na
semana passada, por exemplo, o IBGE mostrou o aumento do trabalho
infantil, o que dá a idéia do ambiente de caos
entre adolescentes.
Mas prestaria mais atenção ao que o governo
pensa em fazer nas unidades da Febem -de onde saem os Leonardos
que lá foram parar por posse de arma e são "assistidos"
por quadrilhas- do que a mudanças legais.
A essência é a seguinte: vivemos num país
que já está fazendo nossos jovens de linguiça,
marginalizados economicamente, sabotados educacionalmente
e triturados moralmente.
Fala-se mais em diminuir a maioridade penal do que em aumentar
a menoridade educacional.
PS - Não perdi o otimismo
de que estamos no caminho (lento, é claro) de uma sociedade
mais civilizada por apostar na força crescente da comunidade
e na progressiva consciência de que a educação
é o maior valor social. Mas, neste momento, sinto-me
um tanto abatido. Faço parte da geração
que viu na resistência contra a ditadura a possibilidade
de construção de uma nação mais
pacífica e civilizada. Às vezes me pego sentindo
saudades dos tempos em que eu andava nas ruas sem medo.
Além disso, faço parte de um grupo de comunicadores
e educadores que atuam em ONGs, difundindo a idéia
de que os jovens-linguiça são vítimas
e, para nossa própria proteção, devemos
tratá-los como vítimas. Sinto que cada vez menos
gente está disposta a ouvir esse tipo de idéia
e prefere ver os jovens entrando numa máquina de moer
carne.
Para ser sincero, eu próprio me sinto um pouco linguiça,
espremido, de um lado pelo discurso da barbárie e,
de outro, pelos bárbaros.
Coluna
originalmente publicada na Folha de S. Paulo,
aos domingos.
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