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Confesso que, ao tomar conhecimento dos detalhes da morte
do casal de namorados Liana Friedenbach e Felipe Caffé,
fui provocado pela minha porção selvagem -ou
simplesmente pela minha porção pai-, disposta
a fazer vagarosamente justiça com as próprias
mãos.
Admito ao leitor que gostaria de me convencer de que, diminuindo
a maioridade penal, o que só depende da mudança
de uma lei, eu dormiria melhor enquanto meus filhos, divertindo-se
nas baladas, ainda não chegassem em casa.
Acirrado na semana passada pelo assassinato do casal de namorados,
o debate sobre o endurecimento das leis para combater a violência
é um jeito que encontramos para nos iludir com uma
saída fácil e rápida, mas ineficaz.
Na semana passada, vimos como personalidades sérias,
sinceramente preocupadas em construir uma sociedade civilizada,
se renderam à comoção. Demonstraram publicamente
simpatia pela idéia de jogar adolescentes numa prisão
de adultos.
É reflexo da angústia geral. Na sexta-feira,
uma enquete promovida pela Folha Online entrevistou 25 mil
pessoas e mostrou que 98% delas vêem na redução
da maioridade penal uma boa maneira de combater o crime.
O raciocínio é simples e, vamos reconhecer,
sedutor: os jovens cometem os crimes porque se imaginam impunes.
Se souberem que, flagrados, ficarão metidos em uma
jaula com adultos, pensarão duas vezes.
Quem se dispõe a argumentar sobre a impropriedade dessas
soluções se vê acuado, apontado como defensor
de bandido, quase um cúmplice. O que se deve perguntar
é o seguinte: enjaular os jovens entre adultos talvez
aplaque a vontade de vingança, mas vai nos deixar mais
tranquilos?
Como não existe pena de morte nem prisão perpétua
no Brasil, esses jovens estarão, mais cedo ou mais
tarde, de volta às ruas, ainda mais ameaçadores.
O problema, no Brasil, não é a falta de leis,
mas a desobediência a elas. Justamente nisso, na sensação
de impunidade, está um dos motores da barbárie.
Centenas de milhares de criminosos já condenados estão
fora das cadeias. Mais centenas de milhares nem chegam a ser
processados devido à inépcia policial. Inquéritos
são ruins e esfarelam-se, inconsistentes, quando chegam
ao Judiciário.
Diminuiu o número de assaltos a bancos e de sequestros
pela simples razão de que, diante da ofensiva policial,
o delinquente passou a fazer melhor o cálculo de custo-benefício.
Certamente, se todos os crimes tivessem desfechos tão
rápidos como o que se viu no caso do casal de namorados
assassinado, estudantes de uma tradicional escola de São
Paulo, a percepção geral de impunidade seria
diferente.
Quando se criaram as novas leis de privação
de liberdade para os jovens, imaginou-se, entre outras coisas,
que o melhor e mais óbvio seria investir na recuperação.
Os adolescentes são seres em formação
e necessitam de um tratamento diferenciado. Quem ganharia
com indivíduos que, depois de cumprirem a pena, ficassem
ainda mais enraivecidos?
Privar da liberdade seria não só um tempo de
punição mas um esforço para que, devidamente
educado, com base nas especificidades psicológicas
da infância e da adolescência, o jovem não
voltasse a ameaçar a sociedade.
No entanto, as leis não foram cumpridas ou foram descuidadas:
são ainda exceções os locais que conseguem
oferecer as chamadas medidas socioeducativas de qualidade.
Gasta-se muito dinheiro -em média, R$ 4.000 por mês-
para cada interno em uma Febem e os resultados são
ruins. Misturam-se irresponsavelmente crianças e adolescentes
das mais diversas faixas etárias, criando uma escola
do crime.
É muito mais cômodo satisfazer a opinião
pública, apavorada, propondo a redução
da maioria penal do que tratar da complexidade de reintegrar
um jovem. Esse é um processo que envolve reengenharia
da Febem, melhoria da educação pública,
policiamento comunitário, planejamento familiar, ações
de saúde pública contra abuso de álcool
e drogas, trabalho com as famílias, investimentos em
lazer e cultura na periferia, programas de renda mínima
acoplados à profissionalização e geração
de atividades econômicas para jovens.
Em várias partes do mundo há experiências
que mostram ser possível recuperar os jovens, desenvolvendo
neles a sensação de pertencimento. Isso não
é simples -demanda paciência, profissionais qualificados,
espaços estimulantes e saudáveis, envolvimento
comunitário-, mas é possível.
As melhores experiências são aquelas em que entidades
comunitárias assumem tarefas educativas nas instituições,
como, aliás, esparsamente já ocorre no Brasil.
Isso, na minha opinião, é ser duro de verdade
contra o crime.
Compreensivelmente, a população quer, até
para aplacar sua angústia, respostas rápidas.
Exige, com razão, eficiência policial, celeridade
da Justiça. Está disposta, portanto, a se iludir.
O problema é que, para combatermos a violência,
corremos o risco de nos convertermos em selvagens, estimulando
o Estado a ser instrumento de vingança ou sustentando
grupos de extermínio -e, aí, os selvagens terão
vencido moralmente.
Não teremos conseguido civilizá-los, mas eles
terão conseguido nos deixar um pouco selvagens.
PS - Sobre o adolescente que matou Liana, a lei permite que,
depois de cumprir a pena na Febem, ele seja levado a um manicômio
judiciário. Gente assim não pode mesmo ficar
livre, ameaçando a sociedade.
Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo,
aos domingos.
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