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Lancei a pergunta que está
no título desta coluna para a coordenadora do programa
Bolsa-Família, Ana Fonseca, responsável pela
distribuição, no próximo ano, dos anunciados
(embora ainda não assegurados) R$ 5,3 bilhões
aos pobres. Corremos o risco de viciar famílias em
recursos públicos? "É uma questão
atordoante", reconheceu.
Para ela, esses recursos são
uma porta de entrada para alguma inclusão dos mais
pobres. "Vamos ter de abrir as portas de saída."
Ou seja, as bolsas não são planos de aposentadoria
nem esmola, mas mecanismos passageiros para que os indivíduos
habilitem-se a ganhar a vida sem ajuda oficial.
Ana Fonseca comentou que, sem crescimento econômico,
gerando salários e empregos, não há plano
de distribuição de recursos que funcione. "As
bolsas virariam um saco sem fundo."
Um dos maiores especialistas em programas
de renda mínima, o economista Márcio Pochmann,
secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e
Solidariedade em São Paulo, acha que nem mesmo o crescimento
econômico evitaria um nível do que ele chama
de "dependentismo". O que, traduzindo, seria a mendicância
com dinheiro público - ou seja, a "bolsa-esmola".
Impossível deixar de considerar que a bolsa-família,
anunciada pelo presidente Lula na semana passada, é
um avanço de tecnologia social.
Não se sabe ainda como será
a gerência do Bolsa-Família, quantos governadores
e prefeitos vão aderir ao programa nem qual o montante
de recursos disponíveis. Até agora, o que vemos
é somente o desenho do programa.
Mas o desenho revela uma preocupação
de evitar dispersão dos recursos, buscando foco. Mais:
estabeleceu-se como meta integrar o Bolsa-Família aos
projetos similares estaduais e municipais. O que é
difícil, como admitiu Lula na última quinta-feira,
pela vaidade de governadores e prefeitos. Esse tipo de "vaidade",
diga-se, fez com que se lançasse com forte apelo de
marketing o Fome Zero.
Justamente o medo da "bolsa-esmola", aquele dinheiro
que se presta a perpetuar a dependência, faz com que
se exijam contrapartidas. Aposta-se na idéia, sensata,
de que, se a família atentar para a saúde e
a educação dos filhos, haverá, no futuro,
mais trabalhadores. "Não é, infelizmente,
tão simples", diz Márcio Pochmann, com
o que concorda Ana Fonseca.
Existem segmentos marginalizados há
tanto tempo, gerações que vivem na exclusão,
que as bolsas, mesmo com todas as contrapartidas, não
criaram cidadãos autônomos.
Nem mesmo os países ricos -
a começar pelos Estados Unidos- conseguem escapar dos
mendigos oficiais. Imagine uma nação com tantos
séculos de exclusão e baixo índice de
escolaridade.
Nem é necessário ir para o Nordeste para ver
a miséria geracional. Na cidade de São Paulo,
há centenas de milhares de miseráveis que não
têm renda, vivem de favor, trocam trabalho por um prato
de comida ou por um quarto. "A renda mínima foi
pensada para complementar a renda, não para ser a renda",
diz Pochmann.
O nó social está no
fato de que o mercado de trabalho está cada vez mais
exigente, e a educação pública de qualidade
é escassa. Vemos em todo o país gente com diploma
universitário disputando cargos que, a rigor, não
exigiriam nem mesmo o ensino fundamental -vagas, por exemplo,
para garis. Descobriu-se até uma tendência de
executivos diminuindo o próprio currículo na
procura por um emprego, temendo serem considerados "qualificados
demais" para o posto.
Na semana em que se lançou o Bolsa-Família,
novos recordes de desemprego foram apresentados - isso num
mês que, tradicionalmente, tende a ser melhor devido
à proximidade das festas de final de ano. A imensa
maioria dos novos empregos criados é informal, o que
faz baixar a renda do trabalhador e reforça relatório
do Banco Mundial, divulgado na sexta, informando mais uma
vez o fato de que somos o campeão em desigualdade na
América Latina. "Além do crescimento, as
bolsas dependem da melhoria dos indicadores de saúde
e educação", analisa Ana Fonseca.
A miséria, como se sabe, se
auto-reproduz; filhos de pobres tendem a ser pobres.
Como se não bastassem todas essas dificuldades, imensas,
prefeitos, governadores e presidente não conseguem
se entender para coordenar suas ações sociais.
É porque a política,
no Brasil, depende da pobreza assim como os pobres dependem
da esmola -preferem mendigos a cidadãos.
PS - Mais um indicativo sobre os efeitos da crise. Será
divulgado nesta semana estudo sobre a classe média
da região metropolitana de São Paulo, feita
pela secretaria municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade.
De 1992 até 2000, a classe média diminuiu em
quase 17%; o número de pessoas mais ricas aumentou
11%; e o dos mais pobres subiu 42%. O fato é que, hoje,
não existe nenhum grupo político que represente
essa classe média, que não tem direito a nenhum
tipo de bolsa, mas já não matricula os filhos
numa escola privada.
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