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REFLEXÃO

Como valorizar a relação entre migrantes nordestinos e São Paulo?

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Folha de S. Paulo
19/10/2003

Capital de São Paulo é o Brasil

Só a relação de ódio e amor entre paulistas e nordestinos explica a desproporcional repercussão da afirmação da prefeita Marta Suplicy, na semana passada, de que interesses nordestinos agiram contra a aprovação de um empréstimo para São Paulo. "É uma preconceituosa", atacou o senador José Agripino (PFL-RN). "Os delírios em relação ao Nordeste não passam de besteirol", emendou Heloísa Helena (PT-AL). "Um absurdo de uma caprichosa", fez coro o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA).

Essa gritaria foi provocada porque, na terça-feira, uma comissão do Senado resolveu protelar, mais uma vez, a aprovação de empréstimo do BNDES para a melhoria dos transportes públicos na cidade de São Paulo. Irritada, a prefeita acusou senadores do Nordeste de bloquear a liberação de recursos - entre os que se opuseram à aprovação estava o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).

Marta Suplicy pode ter sido inábil, intempestiva e arrogante, mas daí a ser acusada de ter preconceito contra nordestinos - ela que foi um dos principais cabos eleitorais do pernambucano Lula - vai uma imensa distância.

Claro que existe a questão eleitoral. Aproxima-se a disputa pela Prefeitura de São Paulo, principal vitrine municipal do PT, e muitos vêem na ajuda do BNDES um carimbo eleitoral. Há algo, porém, mais profundo: a relação mal resolvida entre São Paulo e os nordestinos.

De acordo com dados lançados, na quinta-feira, pela Fundação Seade, 30% dos habitantes da cidade de São Paulo são migrantes. A imensa maioria deles são nordestinos: os baianos, em primeiro lugar, são 25%, seguidos pelos pernambucanos, que somam 15%, e pelos cearenses, que totalizam 8%.

Se computarmos os paulistanos filhos ou netos de nordestinos, veremos que, se, no passado, o paulistano típico tinha um pé na Itália, hoje o tem no Nordeste. E aí reside um problema.

Não se vê na cidade reverência ao nordestinos. Não há um museu decente que conte a saga deles em São Paulo; não fazem parte dos livros didáticos como referências positivas, estão geralmente associados à seca, à miséria e aos políticos corruptos; quase nunca (para não dizer nunca) aparecem como heróis em novelas sobre a vida paulistana, papel sempre oferecido aos italianos.
Não raro, ouvem-se comentários maldosos e preceituosos que ligam os nordestinos à criminalidade ou à falta de cultura.

Mas, em nenhuma outra cidade brasileira - incluindo as do Nordeste -, tantos nordestinos foram tão beneficiados, favorecidos pela mobilidade social - o que, de certa forma, é uma distribuição de renda.

Apesar de viver em São Bernardo, Lula é um produto tipicamente paulistano; a cabeça política do PT sempre esteve na cidade, embora o braço sindical reinasse no ABC. O partido é presidido pelo cearense José Genoino, e o governo tem como líder na Câmara o alagoano Aldo Rebelo, eleito por São Paulo.

Aliás, até agora, a principal adversária de Marta Suplicy na disputa eleitoral é a paraibana e ex-prefeita Luiza Erundina.

Apenas a ignorância explica por que ainda não se vê São Paulo, com todas as suas vantagens e defeitos, como a melhor síntese do Brasil. É capital não-oficial do país, muito mais representativa do que Brasília. E pela simples razão de que o principal capital da cidade, sua maior riqueza, é o capital humano acumulado pela diversidade da inteligência e do empreendedorismo dos migrantes e imigrantes.

Estranha lógica essa que supõe que ajudar São Paulo seja discriminar o resto do Brasil. Nesse superficial debate sobre a frase de Marta, não disseram o óbvio: quem mais será favorecido pela melhoria dos transportes públicos em São Paulo serão os nordestinos. É, afinal, a maior cidade nordestina do Brasil, onde a maioria dor nordestinos, por morar mais na periferia, anda de ônibus. Ao contrário dos senadores.

PS - Por falar em preconceito, a ministra Benedita da Silva errou, pois usou o dinheiro público irregularmente ao hospedar-se no hotel em Buenos Aires para atividades privadas. Merece mesmo ser criticada. Mas o escândalo é desproporcional ao deslize. Ela está sendo apresentada à opinião pública como se fosse uma delinquente. Muita gente que está aí usou a estrutura pública para atividades eleitorais e não apanhou tanto. Sou obrigado a me perguntar se o fato de Benedita ser negra e ex-favelada não ajuda a engrossar as críticas.


Coluna originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo, aos domingos.

   
 
 
 

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