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Só a relação
de ódio e amor entre paulistas e nordestinos explica
a desproporcional repercussão da afirmação
da prefeita Marta Suplicy, na semana passada, de que interesses
nordestinos agiram contra a aprovação de um
empréstimo para São Paulo. "É uma
preconceituosa", atacou o senador José Agripino
(PFL-RN). "Os delírios em relação
ao Nordeste não passam de besteirol", emendou
Heloísa Helena (PT-AL). "Um absurdo de uma caprichosa",
fez coro o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA).
Essa gritaria foi provocada porque,
na terça-feira, uma comissão do Senado resolveu
protelar, mais uma vez, a aprovação de empréstimo
do BNDES para a melhoria dos transportes públicos na
cidade de São Paulo. Irritada, a prefeita acusou senadores
do Nordeste de bloquear a liberação de recursos
- entre os que se opuseram à aprovação
estava o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).
Marta Suplicy pode ter sido inábil,
intempestiva e arrogante, mas daí a ser acusada de
ter preconceito contra nordestinos - ela que foi um dos principais
cabos eleitorais do pernambucano Lula - vai uma imensa distância.
Claro que existe a questão
eleitoral. Aproxima-se a disputa pela Prefeitura de São
Paulo, principal vitrine municipal do PT, e muitos vêem
na ajuda do BNDES um carimbo eleitoral. Há algo, porém,
mais profundo: a relação mal resolvida entre
São Paulo e os nordestinos.
De acordo com dados lançados,
na quinta-feira, pela Fundação Seade, 30% dos
habitantes da cidade de São Paulo são migrantes.
A imensa maioria deles são nordestinos: os baianos,
em primeiro lugar, são 25%, seguidos pelos pernambucanos,
que somam 15%, e pelos cearenses, que totalizam 8%.
Se computarmos os paulistanos filhos
ou netos de nordestinos, veremos que, se, no passado, o paulistano
típico tinha um pé na Itália, hoje o
tem no Nordeste. E aí reside um problema.
Não se vê na cidade reverência
ao nordestinos. Não há um museu decente que
conte a saga deles em São Paulo; não fazem parte
dos livros didáticos como referências positivas,
estão geralmente associados à seca, à
miséria e aos políticos corruptos; quase nunca
(para não dizer nunca) aparecem como heróis
em novelas sobre a vida paulistana, papel sempre oferecido
aos italianos.
Não raro, ouvem-se comentários maldosos e preceituosos
que ligam os nordestinos à criminalidade ou à
falta de cultura.
Mas, em nenhuma outra cidade brasileira - incluindo as do
Nordeste -, tantos nordestinos foram tão beneficiados,
favorecidos pela mobilidade social - o que, de certa forma,
é uma distribuição de renda.
Apesar de viver em São Bernardo,
Lula é um produto tipicamente paulistano; a cabeça
política do PT sempre esteve na cidade, embora o braço
sindical reinasse no ABC. O partido é presidido pelo
cearense José Genoino, e o governo tem como líder
na Câmara o alagoano Aldo Rebelo, eleito por São
Paulo.
Aliás, até agora, a
principal adversária de Marta Suplicy na disputa eleitoral
é a paraibana e ex-prefeita Luiza Erundina.
Apenas a ignorância explica
por que ainda não se vê São Paulo, com
todas as suas vantagens e defeitos, como a melhor síntese
do Brasil. É capital não-oficial do país,
muito mais representativa do que Brasília. E pela simples
razão de que o principal capital da cidade, sua maior
riqueza, é o capital humano acumulado pela diversidade
da inteligência e do empreendedorismo dos migrantes
e imigrantes.
Estranha lógica essa que supõe
que ajudar São Paulo seja discriminar o resto do Brasil.
Nesse superficial debate sobre a frase de Marta, não
disseram o óbvio: quem mais será favorecido
pela melhoria dos transportes públicos em São
Paulo serão os nordestinos. É, afinal, a maior
cidade nordestina do Brasil, onde a maioria dor nordestinos,
por morar mais na periferia, anda de ônibus. Ao contrário
dos senadores.
PS - Por falar em preconceito, a ministra Benedita da Silva
errou, pois usou o dinheiro público irregularmente
ao hospedar-se no hotel em Buenos Aires para atividades privadas.
Merece mesmo ser criticada. Mas o escândalo é
desproporcional ao deslize. Ela está sendo apresentada
à opinião pública como se fosse uma delinquente.
Muita gente que está aí usou a estrutura pública
para atividades eleitorais e não apanhou tanto. Sou
obrigado a me perguntar se o fato de Benedita ser negra e
ex-favelada não ajuda a engrossar as críticas.
Coluna originalmente publicada
no jornal Folha de S. Paulo, aos domingos.
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