Negro,
filho de faxineira e de pai desconhecido, ex-interno da Febem,
ele aprende, na marra, os segredos das ruas
Ricardo Elias é uma exceção. Viveu na
zona leste, cursou escola pública e graduou-se na disputada
Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo. Virou cineasta, premiado em festivais
dentro e fora do Brasil. O personagem Heracles, que ele coloca
nas telas do circuito comercial no começo do próximo
mês, vem também da periferia, mas é a
regra: não teve escolaridade e sobrevive de um subemprego.
"Queria Heracles como uma das sínteses da cidade",
conta Ricardo. Seu filme, intitulado "Os 12 Trabalhos",
terá pré-estréia hoje, na Cinemateca,
como parte das comemorações dos 453 anos de
São Paulo.
Negro, filho de faxineira e de pai desconhecido, ex-interno
da Febem, ele aprende, na marra, os segredos das ruas e, assim,
vai conhecendo as profundezas da cidade -Heracles é
a tradução romana de Hércules, o semideus
grego que, para obter o perdão por seus crimes, é
obrigado a executar 12 trabalhos. "A grande missão
do personagem é sentir-se respeitado."
O personagem é um motoboy, integrante dessa tribo
paulistana de 300 mil pessoas. Ao cruzarem todos os bairros,
eles fazem a conexão de um espaço desconectado,
repleto de obstáculos e armadilhas. "Sua própria
existência é reflexo do caos do trânsito."
Chamou a atenção do cineasta o fato de os motoboys
viverem em condições trabalhistas precárias
e, quebrados, encherem os prontos-socorros dos hospitais.
"Desse ponto de vista, são heróis urbanos."
Eles testemunham a multiplicidade e as contradições
de uma cidade. Estão sozinhos em suas motos, mas contam
com uma rede de solidariedade. "Em meio à selvageria
urbana, Heracles vai se seduzindo pelas pequenas gentilezas
urbanas."
A periferia é marcante na obra de Ricardo Elias, presente
no seu premiado "De Passagem". Foi na Vila Matilde,
zona leste, que se divertia com a pequena criação
de cabras de seu avô, um imigrante sírio. Ali,
no bairro, aprendeu a apreciar cinemas ao freqüentar
o cinema São Sebastião. Depois o cinema sumiu,
dando lugar a uma igreja evangélica. Achou uma coincidência
quando "Os 12 Trabalhos" ganhou o festival da Espanha
-o prêmio chama-se San Sebastian.
Mas, assim como aquele cinema de um então bairro pacato,
sumiu a periferia em que se podia viver sossegado criando
cabras. Periferia passou a se traduzir por exclusão
e violência, como sentiram, na pele, o diretor mas também
o ator principal.
O ator que faz o papel de Heracles (Sidney Santiago) é
filho de um pescador que vivia na periferia do Guarujá.
Venceu os preconceitos e estudou balé clássico.
Atualmente, se dedica a aprender canto na USP -assim, nos
"trabalhos" que enfrentou na vida real, ele acabou
se aproximando tanto da trajetória de seu diretor,
Ricardo Elias, como, principalmente, de seu personagem.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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