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Nasci no Ibirapuera, depois morei
na Vila Buarque, mudei-me para o Bexiga e agora estou na Vila
Madalena. Sou, portanto, um paulistano de sorte. Consegui
viver cercado, nesses bairros, de natureza, artistas, intelectuais
e boêmios. Gosto muito de morar aqui; poderia, se quisesse,
ter ficado em Nova York, mas, sinceramente, considero São
Paulo mais interessante. Gosto, mas não consigo sentir
orgulho da cidade. Temos, de fato, o que comemorar nessa festa
de 450 anos?
À falta de beleza natural somaram-se
degradação urbana, violência e miséria,
criando uma comunidade de seres acuados. As crianças
perderam as ruas para brincar; os pedestres perderam as calçadas;
as casas perderam o direito de deixar as janelas abertas.
As madrugadas perderam a inocência. Perdemos até
a garoa.
A educação pública
é ruim, o transporte, precário, os carros congestionam
o tráfego e fazem com que, em alguns horários
e locais, andar a pé seja mais veloz. Viramos uma imensa
periferia salpicada de ilhas de qualidade de vida, onde imperam
exércitos de valets, de flanelinhas, de pedintes, de
seguranças privados protegendo casas e edifícios
que fazem lembrar edificações medievais. Nem
mesmo aprendemos a enfrentar as seculares enchentes.
Apesar disso tudo -e das minhas noites
insones à espera da chegada dos filhos adolescentes
e, devido a um assalto, de ter sido obrigado a espalhar, na
minha casa, engenhocas de segurança com as quais mal
consigo lidar- , estou convencido de que há motivos
para comemorar. Não comemoro, porém, o que fomos,
mas o que estamos começando a ser.
São Paulo está metida
em uma extraordinária efervescência, o que faz
daqui um fértil laboratório. A cidade ficou,
paradoxalmente, pior, no entanto mais interessante. Olhando
da planície a modorra imponente da reforma ministerial,
tramada no planalto, sinto-me ainda mais entusiasmado pela
singularidade de uma comunidade.
Tenho testemunhado a disseminação
de organizações de bairro e até mesmo
de rua, interferindo nos debates urbanos, apoiados na imprensa
e no Ministério Público. Indivíduos,
empresas e associações assumem praças,
monumentos, parques, canteiros; entidades não-governamentais
desenvolvem experiências nas áreas de educação,
saúde, ambiente ou cultura, buscando parcerias com
o setor público.
Apesar da lentidão e incompetência
crônica dos governos, já se vêem, embora
esparsamente, integrações de ações
conduzidas nos vários níveis de poder; muitos
programas de distribuição de renda contemplam
redes formadas por verbas federais, estaduais e municipais,
numa intricada tecnologia social.
Pela primeira vez em sua história,
São Paulo começa a mudar o sentido de sua expansão,
valorizando as regiões centrais. Não é
pouca coisa nessa trágica rotina de periferização.
Insisto que, em nenhuma parte do mundo, atualmente, existem
tantas obras em uma região central, o que se deve à
conjunção de investimentos públicos federais,
estaduais e municipais e privados.
Empresários organizam-se para
repovoar a orla ferroviária -são 135 quilômetros
de linhas férreas somente dentro da cidade-, criando
novos bairros em áreas que, devido à debandada
das indústrias, estão abandonadas. E, aproveitando
os trilhos, terão um transporte de qualidade. É
a maior fronteira urbana do planeta a ser desbravada e recolonizada.
Tudo isso está ocorrendo porque
chegamos ao limite de uma cidade inviável, na qual
a violência é mais uma conseqüência
do descuido e da desagregação. Desfez-se a idéia
de que estamos numa coletividade. Mas, devido à força
econômica, o capital humano conseguiu prosperar e nunca
deixou de atrair e reter pessoas criativas, seduzidas pela
possibilidade de prosperar.
Por isso, este mês de janeiro
será, para mim, inesquecível. Não me
lembro de ter visto aqui tanta gente fazendo tanta coisa interessante,
em uma profusão de exposições, shows,
concertos, inaugurações de museus, palestras,
vídeos, livros. É como se a arte vencesse o
medo e estabelecesse um marco da consciência de uma
coletividade.
É como se os seres sitiados
saíssem para fora e mostrassem toda a criatividade
de um agrupamento humano. Aparece, então, a melhor
de nossas paisagens, que é a paisagem humana. Somos,
afinal, um lugar em que qualquer indivíduo que se preze
sempre tem um projeto na cabeça.
Essa deliciosa perspectiva, mesmo
que experimentada em uma festividade, não tem volta
-por isso, comemoro.
PS - Peço desculpa pelo bairrismo
explícito, mas quando imagino um futuro melhor para
São Paulo visualizo uma imensa Vila Madalena, onde
ainda se consegue andar a pé nas ruas, passeando entre
artesãos, artistas, intelectuais e boêmios. É
aconchegante voltar para casa à noite e ouvir as pessoas
conversando e rindo nos bares ou nas esquinas. É um
bairro em que sobrevive, aqui e ali, a imagem de crianças
brincando nas ruas e de senhoras na frente de suas casas paparicando.
Junto com o provincianismo, existe uma força cosmopolita
de seus designers, produtores de vídeo, fotógrafos.
O inesquecível deste janeiro é que, mesmo que
episodicamente, senti o gosto de ver São Paulo como
uma gigantesca Vila Madalena.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S. Paulo, na editoria
Cotidiano.
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