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Uma das melhores coisas -e também uma das mais
difíceis- que se podem fazer por uma cidade é
tirar espaço dos automóveis.
É improvável que os
candidatos a prefeito das grandes cidades tenham a coragem
de admitir, neste ano eleitoral, que a implantação
do pedágio urbano, medida que tiraria automóveis
de circulação e proporcionaria a arrecadação
de mais recursos para a melhoria do transporte público,
é uma solução inevitável.
Mais cedo ou mais tarde, por falta
de alternativa, a medida será enfiada goela abaixo
da classe média, como ocorre, com sucesso, em Londres.
Para quem aprecia cidades modernas
e civilizadas, com calçadas largas e transporte público
decente, quanto mais cedo vier o pedágio urbano, melhor.
Até lá, qualquer obra
para facilitar a vida dos motoristas será só
um anestésico, sempre sob suspeita de desperdício
de dinheiro público. É o caso da abertura de
buracos para fazer as passagens subterrâneas, avaliadas
em R$ 149 milhões, em dois cruzamentos da avenida Brigadeiro
Faria Lima, caminho obrigatório da elite e da classe
média paulistanas.
O buraco é muito mais embaixo,
muito mais fundo do que um provinciano debate sobre o trânsito
e sobre o impacto eleitoral de uma obra. Importa saber até
que ponto o poder público terá condições
de acabar com a supremacia irracional e selvagem dos automóveis,
na defesa da civilidade das ruas.
Basta ver os números para constatar
a inevitabilidade do pedágio urbano.
Em 1940, a cidade de São Paulo
tinha 46.576 automóveis. Passados 20 anos, eram 286.325.
Mais 20 anos, 1.585.986. E mais 20 anos, em 2000, 5.310.528.
Em só mais dois anos, entre
2000 e 2002, registraram-se novos 365 mil veículos,
o que equivale a toda a frota de 1962. Até o fim deste
ano, estaremos nos aproximando da marca dos 6 milhões
de automóveis, sem contar os veículos da região
metropolitana e de outros Estados que circulam pela cidade.
Imagine, então, quando o país voltar a crescer
e ainda mais pessoas comprarem seu carrinho para fugir dos
incômodos do transporte público.
"É apenas uma questão
de medir quantos carros são lançados todos os
dias nas ruas, qual o espaço disponível para
sua circulação e quais os recursos disponíveis
para novas obras", diz o diretor do Departamento Nacional
de Trânsito, Ailton Brasiliense. "A conta não
fecha", conclui.
A cidade não pára de
fazer obras para evitar congestionamentos, mas o trânsito
está cada vez pior. O rodízio vai perdendo efeito.
As obras da Faria Lima, por exemplo, resultarão em
alívio momentâneo, mas logo o congestionamento
estará de volta -e, possivelmente, pior. "Estamos
condenados à paralisia", diz Roberto Scaringela,
um dos mais importantes especialistas brasileiros em engenharia
de trânsito.
A destruição das cidades
a favor dos automóveis é apenas mais uma faceta
do apartheid social, exatamente a mesma raiz da má
distribuição de renda.
Uma das idéias mais cretinas
de que se tem notícia na história da cidade
de São Paulo ocorreu no final da década de 1960,
produzida pela aliança do apartheid social com a burrice
técnica -e estamos pagando por ela até hoje.
Naqueles tempos, a cidade tinha 690.315
automóveis, e um grupo de autoridades municipais, apoiadas
pela maioria dos políticos e sem enfrentar reação
da sociedade, tirou os bondes de circulação.
Em vez de o espaço dos trilhos ser aproveitado para
transporte público, permitiu-se a invasão dos
automóveis.
Em mais um sinal da falta de lucidez,
combinada com descaso, o poder público rechaçou,
no começo do século, o plano de construção
de metrô, quando as obras seriam infinitamente mais
baratas do que nos dias de hoje.
Qualquer cidade, mesmo em países
ricos, que crescesse tão rapidamente e num prazo tão
curto, enfrentaria, de qualquer jeito, sérios dramas.
Pioramos, no entanto, o que já seria difícil,
devido à combinação desastrosa da cretinice
técnica com o descaso do apartheid social -a essência
de muitos de nossos problemas.
É por isso que, como mostrou
pesquisa internacional, divulgada na sexta-feira, o Brasil
é o sétimo maior país consumidor do mundo,
mas somente 33% de seus habitantes podem ser considerados
consumidores.
O que os pedestres perderam de calçadas
os trabalhadores perderam de renda.
PS - Para não cometer
injustiça, vale lembrar que quem mais abriu espaço
para os pedestres de São Paulo foi um dos mais importantes
representantes da elite paulistana, o banqueiro Olavo Setubal,
que, quando prefeito, criou os calçadões nas
principais ruas do centro. Só nos últimos anos
o centro voltou a ser valorizado, transformando-se num dos
mais importantes projetos em andamento no mundo de recuperação
de áreas históricas, graças a investimentos
privados, estaduais e municipais. É um notável
exemplo -e, certamente o ponto alto da gestão de Marta
Suplicy- de engenharia comunitária. Além do
apelo histórico e dos investimentos em infra-estrutura
já feitos, a generosidade dos calçadões
numa cidade dominada pelos automóveis foi um dos fatores
para que não se esquecesse do centro. Nesse provinciano
gesto do passado de defesa das calçadas, está
escrito o que melhor podemos fazer pelo futuro de uma cidade.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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