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José Rivera tinha 16 anos em 1991, quando levou um
tiro e entrou em coma. Morreu apenas em julho passado. Depois
de vegetar por 12 anos numa cama de hospital, ele ganhou,
na edição de sexta-feira passada do "The
New York Times", exatamente 11 linhas, dispersas num
artigo da editoria de assuntos da cidade. Aquelas linhas quase
clandestinas tiveram, para mim, o impacto de uma manchete,
menos pela história daquele jovem preso a uma cama
de hospital e mais pela contabilidade fúnebre.
Ocorre que Nova York comemorou, em
2002, a marca histórica de menos de 600 assassinatos
por ano (mais precisamente, 587), atingindo o patamar de 1963,
ano em que eu tinha sete anos
de idade e costumava andar sozinho, sem me sentir ameaçado,
nas redondezas da loja de meu pai no centro de São
Paulo, na época uma cidade bem mais segura do que Nova
York.
A notoriedade fugaz de Rivera se deve
justamente àquela marca histórica. Como ele
só morreu no ano passado, o assassinato foi registrado
em 2003. A prefeitura não queria virar o ano com mais
de 600 homicídios. Passada a meia-noite, as autoridades
policiais puderam, enfim, comemorar: 596 assassinatos.
O anônimo jovem latino, perdido
no tempo, por pouco, muito pouco, não ofuscou o orgulho
estatístico em relação ao crime. O caso
me chamou a atenção, nesses dias que passei
em Nova York, porque me lembrou como nós, brasileiros,
especialmente os metropolitanos, tão metidos na banalização
da violência, já não contabilizamos a
selvageria.
É preciso sair do país,
nem que seja por uns dias, para voltar a sentir como perdemos
nosso senso de indignação, acostumados à
degradação.
Nada nos incomoda cotidianamente
mais do que a violência, mas não sabemos quantas
pessoas são vítimas de homicídio. Nem
sabemos (até porque não existem) as metas de
segurança fixadas pelas autoridades. Nenhum governador
(vamos repetir, nenhum) comprometeu-se, com percentagens,
a reduzir ao longo de seu mandato os índices de criminalidade;
sabe, afinal, que corre o risco de desmoralizar-se rapidamente.
Se um presidente tivesse semelhante
comportamento com indicadores econômicos, seria deposto
logo após a posse. Suponha-se que Lula não estabelecesse
metas de inflação ou de crescimento econômico
para este ano e, pior, nem se incomodasse em fixá-las.
Diriam, claro, que o país está desgovernado,
sem rumo, perdido. E que o presidente é um maluco.
Diariamente somos informados sobre
a taxa de inflação, de juros, sobre o saldo
da balança comercial, sobre a performance da indústria
etc. Isso porque sabemos que são indicadores vitais.
O problema é que não
aprendemos ainda, vítimas de nossa longa história
de elites culturalmente indigentes e da disseminada exclusão
social, que os indicadores de educação, de saúde
e de segurança também são vitais e deveriam
ser acompanhados em detalhe. Os mais ricos privatizaram por
conta própria os serviços públicos, e
dane-se o resto. Pergunte ao jornalista mais bem informado
quais são as metas sociais do Brasil. Não terá
resposta; se tiver, serão números vagos, perdidos
em documentos oficiais. Não foram assimilados nem pelo
governo, muito menos pela sociedade, o que, por si só,
já demonstra nossa crise social.
Aprendemos, no Brasil, o valor da
estabilidade financeira, e o empenho ortodoxo nesse primeiro
ano de Lula é mais uma prova inequívoca dessa
conquista. Ainda não aprendemos, de verdade, mas apenas
em discurso, o valor da inclusão. Estamos longe de
acreditar, de fato, no valor da educação pública.
Os países que mais avançaram socialmente foram
aqueles que acreditaram na importância de disseminar
o conhecimento e transformaram essa crença numa vontade
obsessiva das famílias, das empresas, da mídia.
É o culto ao capital humano. Não sabemos quais
metas queremos atingir em determinado ano para que melhorem
os níveis de aprendizado de português ou matemática.
Não sabemos quantos alunos gostaríamos de ver
no ensino superior.
Não conhecemos, até
porque não existem, os planos que articulam as várias
esferas do poder para que se atinjam metas sociais, a serem
cobradas pela sociedade. As primeiras manchetes do ano, no
Brasil, se referem ao saldo da balança comercial, o
que todos nós consideramos adequado. Sabemos exatamente
quantos dólares entraram e saíram, numa rígida
contabilidade.
Mas a contabilidade que nos vai fazer
crescer, de forma sustentada, não está apenas
na macroeconomia, discurso oficial e oficioso da esquerda
e da direita. Precisamos saber quantos alunos estão
na escola, recebendo educação de qualidade.
Vamos ter de acompanhar esses dados como seguimos os saldos
da balança comercial.
São esses critérios
que deveriam se prestar para uma análise objetiva do
desempenho de presidentes, de governadores e de prefeitos.
Afinal, esse é o único meio possível
para que, no futuro, tenhamos a sorte de, quem sabe, andar
nas ruas sem medo -e poder contar cada morte, comemorando
a diminuição da violência.
PS - Para uma vítima
da selvageria metropolitana, nenhum prazer pode ser maior
numa cidade do que andar nas calçadas largas, com os
motoristas acuados diante dos altivos pedestres. E sem que
tenhamos de olhar, desconfiados, para trás. A civilidade
de uma cidade se mede exatamente pelo tamanho das calçadas
-daí se vê a barbárie em que nós,
paulistanos, estamos metidos nesse início de comemoração
dos 450 anos de São Paulo.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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