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Jorge Cordeiro Barbosa dormiu quase
toda a noite no ônibus que o levava de Porto Alegre
a São Paulo. De manhã, quando acordou, estava
próximo do terminal rodoviário do Tietê
e, ainda sonolento, perdido na paisagem tumultuada, sentiu
um arrependimento por ter decidido deixar sua terra e experimentar
a vida de migrante. "Tarde demais para voltar atrás",
escreveria, anos depois, em seus manuscritos.
Esses manuscritos, muitas vezes
feitos debaixo de viadutos transformados em quartos de dormir
e escritório, serviram para que Jorge, conhecido como
Gaúcho, contasse a experiência de um desempregado,
sem família, que vai, aos poucos, se desconectando
da sociedade. "Escrever um livro tinha virado terapia
para mim."
Executivos são convidados a
passar por programas de treinamento em que testam seus limites
para aprender a administrar pressões -e vivem ali,
naqueles instantes de desafio, a solidão. É
o que, em essência, conta Gaúcho. Ele, que em
Porto Alegre chegou a cursar o ensino médio e teve
vários empregos, acabou na rua, fazendo da bebida um
escape do frio, da fome e da falta de perspectiva.
Quando rabiscava o papel, seus companheiros
de rua achavam estranho. "Os caras começaram a
falar que eu tinha ficado doido, mas eu estava recuperando
minha consciência." Era a consciência de
quem, graças ao projeto de livro, se percebeu, sem
se reconhecer em quase nada, exceto na marginalidade .
Certa vez, passou, sujo, maltrapilho,
na frente de um restaurante e pensou: "Eu já tive
uma vida de verdade, igual à desses caras, e se eu
contasse para eles, ninguém iria acreditar".
Ao mesmo tempo que tentava reestruturar
sua vida no papel, ele foi, na rua, montando uma família.
Encontrou uma mulher que tentava se livrar (e se livrou) do
crack, casou-se com ela, teve dois filhos e conseguiu morar
num albergue.
O livro, intitulado "Identidade
Pedida - Memórias de um Morador de Rua" (Legnar
Editora, 196 págs., R$ 39), está longe de ser
um sucesso de vendas. Entre o lançamento, em dezembro,
até as duas primeiras de janeiro deste ano, só
tinha vendido cerca de 300 exemplares. Mas serviu para que
ele se sentisse alguém com uma experiência a
contar -ou seja, recuperou a identidade e saiu do anonimato.
Coluna originalmente
publicada na Folha Online, na editoria Sinapse.
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