Percebeu
que, através da comida, conseguiria fazer uma incubadora
para jovens abrirem pequenos negócios
David Hertz tinha 17 anos e acabado de entrar num curso de
engenharia, mas preferiu trancar a matrícula e viajar
por alguns meses no exterior. Os poucos meses se alongaram
por sete anos, durante os quais ele descobriu rotas pela Ásia
-fez meditação com monges tibetanos-, aprendeu
com mestres da culinária hindu os mistérios
de especiarias e, na volta ao Brasil, sua rota levou-o à
favela do Jaguaré, na zona oeste de São Paulo.
"Precisei rodar o planeta para me descobrir numa favela."
O encontro, tão improvável, se deu pelo prazer
pela comida. Logo no início da viagem, ele já
sabia que não voltaria tão cedo ao Brasil e,
muito provavelmente, a engenharia ficaria, na melhor das hipóteses,
para outras encarnações. Viu de longe o desencantamento
de seus pais, que o imaginavam fazendo cursos na Europa e
nos Estados Unidos.
Antes de chegar à Índia, David experimentava
pratos em povoados da Tailândia, seduzido por temperos.
"Senti gostos que jamais pensei que sentiria." Estava
chegando o momento do retorno, e ele ainda não tinha
uma carreira, nem dinheiro. Em Londres, conheceu um badalado
chef indiano. "Passei a ser uma espécie de discípulo
dele."
O aprendizado informal de David tornou-se mais sistemático,
com os cursos que fez e as aulas que recebeu. Isso o habilitaria
a ganhar a vida no fogão quando regressasse. Começou
a ser chamado para elaborar o cardápio de restaurantes
sofisticados, na região dos Jardins, além de
completar o orçamento com eventos. "Claro que
eu não podia estar feliz. Para mim, cozinhar é
o encontro, quase como se estivéssemos nos elevando."
Conheceu, então, uma adolescente chamada Uridéia
Andrade, que morava na favela do Jaguaré e cujo sonho
era viver da culinária. Ajudou-a a montar seu negócio.
"Foi uma sacada", conta. Percebeu que, através
da comida, conseguiria fazer uma incubadora para jovens abrirem
pequenos restaurantes, lanchonetes, oferecerem serviços
de bufê ou serem cozinheiros. "Como existe muita
demanda na cidade, quem formávamos conseguia emprego.
Uridéia tinha se tornado, então, sua parceira
nesse projeto. Por causa do entusiasmo que testemunhava nos
adolescentes -"transformação dos alimentos
em cheiros, novas formas e cores é um mistério"-,
deu ao seu programa o nome de "Gastromotiva".
Ou seja, a motivação que vinha da gastronomia.
Não era muito difícil encontrar aliados. Fez
de sua casa, no Alto da Lapa, uma espécie de restaurante
particular em que anunciava pratos orientais. "Vinham
amigos e amigas de tudo quanto é lado." Até
porque fora contratado por uma universidade (Anhembi) para
ser professor de gastronomia asiática. Futuros contratantes
de seus alunos freqüentavam esses jantares. "Como
gostavam da comida e do serviço e viam a responsabilidade
dos estudantes, as propostas eram imediatas." David resolveu
dedicar parte de seu tempo a colocar empresas no forno.
E está convencido de que o poder de sedução
e metamorfose das especiarias orientais ele encontrou mais
num favela do que nos restaurantes mais badalados.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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