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REFLEXÃO


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urbanidade
28/12/2005
Sede de olhar

Quando sua família, por causa de problemas políticos, empobreceu subitamente na Argentina, Martin Gurfein tinha apenas 13 anos e, obrigado a trabalhar, conseguiu emprego de office-boy num laboratório fotográfico. O bico ia, lentamente, se transformando em profissão. Atualmente, ele tem 42 anos, vive em São Paulo, tem um bom emprego e é chamado para expor em galerias de arte contemporânea de Nova York. Desde agosto passado, a fotografia levou-o a um novo ângulo e fez com que reaprendesse a olhar para adolescentes que, como ele, vêm de famílias com escassos recursos, mas estão dispostos a aprender. "Quando vi o resultado final, levei um susto."

Ao começar a experiência, Martin, subeditor de fotografia da revista "Caras", não tinha muitas expectativas. Estava com vontade de usar suas horas livres para ensinar fotografia a um grupo de nove alunos de escolas públicas. Nenhum deles tinha uma máquina digital. "Nem sabia exatamente como dar aulas." Dedicou-se a ensiná-los a olhar detalhes, perceber o jogo de luzes, textura e formas que se compunham, por exemplo, num pequeno tapete colocado no batente da porta. Ou num copo no meio de mesa. "Queria que eles fossem tirar as fotos quando tivessem uma idéia na cabeça."

Aos poucos, os estudantes foram descobrindo não só o prazer da expressão pela imagem, mas a revelação de ângulos até então despercebidos. "É como se descobrissem que podiam eles próprios se descobrir ao refinar o olhar." Ínfimos detalhes do cotidiano -ferramentas enfileiradas numa oficina mecânica ou um talher em cima de uma mesa- passaram a ser registrados pelos estudantes.

Decidiram que todo aquele aprendizado deveria virar uma exposição, mesmo que fosse amadora, sem maiores pretensões. "Seria uma pena que ninguém prestasse atenção naqueles registros." Com a ajuda de Martin, cada um deles separou as fotos de que mais gostou e montaram painéis. Foram feitos os convites com algumas imagens para a exposição que se realizou neste mês. "Para minha surpresa, amigos meus, profissionais de publicidade e jornalismo, impressionados com a qualidade, queriam saber quais daquelas fotos eram minhas." Nenhuma. O que era para ser uma experiência passageira vai se perdurar.

Martin vai continuar com o grupo, mas, desta vez, com uma proposta mais ousada: expor o trabalho num museu. "Aprendi com eles o que podem fazer as pessoas que têm sede de olhar." João Nojiri é daqueles exemplos da prioridade dos japoneses pela educação. Seu pai, Quimio, vendia frutas e verduras na Ceagesp, mas conseguiu mantê-lo no colégio Santa Cruz, freqüentado pela elite paulistana. "Sempre nos foi dito que o estudo era a coisa mais importante na vida", conta João, hoje com 38 anos. Ele se formou na Poli, especializou-se em explosões e montou sua própria empresa de engenharia. Está agora se preparando para criar uma escola num dos cenários mais improváveis da cidade -o rio Tietê, um esgoto a céu aberto.

 

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.


   
 
 
 

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