Aquele
corpo-a-corpo com a cidade foi levado para a tela, contando
o prazer e a dor de morar em São Paulo
Entardecia em São Paulo. Irado, Heitor discute, pelo
telefone, com a namorada. Desliga e se desespera. Às
pressas, pega o carro para encontrá-la: quer evitar
o fim da relação e sente que não tem
um segundo a perder. Mas fica preso num gigantesco congestionamento.
Enquanto espera, viaja pelo tempo.
Com suas crianças de rua, mendigos e executivos agitados,
a paisagem paulistana desfila pelo vidro de seu carro. Por
trás das telas desse filme em que Heitor (Marcos Ricca)
é o personagem principal de "A Via Láctea",
há uma outra digressão -e uma tumultuada história
de amor.
No filme, a briga entre o casal ocorre por causa da suspeita
de traição. A outra ponta do triângulo,
entretanto, não é uma pessoa, mas a própria
cidade, que se transforma num personagem. "São
Paulo é, para mim, um útero", compara Lina
Chamie, diretora do filme, o que significa uma fonte de inspiração.
Lina nasceu no Bexiga, naquela época epicentro da
boêmia paulistana, onde, quando adolescente, se encantou
com o teatro. Com os bicos que fez -trabalhava com aparelhagem
de som-, comprou uma pequena motocicleta, que a levava ao
colégio Equipe, então uma espécie de
incubadora de talentos artísticos paulistanos, entre
os quais, o cineasta Cao Hamburguer, candidato ao Oscar com
"O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias".
Para ela, São Paulo e, especialmente, a região
que englobava o Bexiga e o Equipe, era um parque de diversões.
Preferiu, porém, mudar-se para Nova York. Ficou 13
anos por lá. "A imagem que fazia da cidade era
uma imensa nuvem cinza. Mesmo assim, era ali o meu lugar."
Fez mestrado em música em Nova York, mas seu prazer
estava mesmo no cinema. "Ao voltar para casa, estava
voltando para o meu cenário."
Lina não se dá muito bem com a natureza. "Na
praia, me queimo rápido, tenho pele fina. No campo,
os bichos me picam e fico inchada. Gosto mesmo é do
asfalto." Sentir a cidade significa caminhar a pé
ou fluir pelo trânsito, montada numa moto, zanzando
entre os outros. Seus pais se mudaram do Bexiga e foram morar
em Moema -o que a obrigava a ir até o Equipe fazendo
um longo trajeto e encarando a avenida Santo Amaro, "a
rua mais feia do mundo".
A cidade vai mudando -e para pior. Andar de moto passou a
significar risco de morte: ruas ficaram muito congestionadas,
calçadas foram embora, crime cresceu. "A cidade
ficou um espaço de impossibilidades." Daí
prestar-se a ser um personagem para falar de amores, dores
e conflitos - é o que ajuda a explicar a paisagem paulistana
habitar cada vez mais os filmes.
Aquele corpo-a-corpo com a cidade, feito pela moto ou pelas
caminhadas, foi levado para a tela, contando o prazer e a
dor de morar em São Paulo. O filme estréia na
próxima sexta, Dia de Finados, quando São Paulo
não é bem São Paulo: as pessoas viajam
e as ruas ficam vazias, apenas com a lembrança daquele
trânsito exibido em "A Via Láctea".
Mas é a São Paulo -vazia, sem filas- dos que
mais gostam dela, que não a trocam por um feriado na
praia ou no campo.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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