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O choque
de vítimas é visível quando uma professora
agride um garoto que passou a vida sendo agredido
Depois de pegar um de seus estudantes mais indisciplinados
e agressivos pela gola e rasgar sua camisa, Sirley Fernandes
da Silva, professora de uma escola estadual na periferia de
São Paulo, pediu licença médica e resolveu
procurar um psiquiatra -já não sabia lidar com
tanto desrespeito em sala de aula. "O aluno era terrível,
mas depois fiquei com pena dele. Quando chamamos os pais e
percebemos como são ausentes da vida dos filhos, vemos
que o garoto também é uma vítima. O aluno
fica em casa abandonado e, muitas vezes, vai para a escola
só para comer."
Depois de um ano de terapia, Sirley não abandonou o
magistério, apenas trocou de série. Passou a
dar aulas no ensino médio, onde, segundo ela, havia
uma "vantagem": "Os alunos do ensino médio
podem ser mais agressivos verbalmente, mas os do fundamental
partem para a agressão física".
Difícil saber o que é mais dramático:
a professora descontrolada pedindo socorro ao psiquiatra ou
a "vantagem" que ela encontrou ao dar aulas para
estudantes mais velhos e apenas ser xingada.
O caso de Sirley faz parte de uma tragédia conhecida
quase exclusivamente por especialistas: a epidemia de distúrbios
mentais dos professores brasileiros, provocados, entre outros
motivos, pela violência e pelas condições
de trabalho ruins. Diante desse massacre psicológico,
um minuto de silêncio seria uma forma apropriada de
comemorar, amanhã, o Dia do Professor.
O cansaço psicológico de Sirley ajuda a explicar
uma informação divulgada pela Folha na sexta-feira
sobre o desempenho escolar em uma das regiões mais
ricas do país. Segundo testes aplicados pelo governo
estadual, 37% dos estudantes que concluem o ensino fundamental
são totalmente analfabetos. Nada menos do que 72% das
escolas nessa região estão em "estado de
atenção", devido ao baixo aprendizado.
Entende-se como as crianças se tornam adultos incapazes
de compreender um texto simples.
O problema dos salários não é o maior
dos males -o maior de todos são as condições
de trabalho. Uma pesquisa realizada neste ano pela Apeoesp
(sindicato dos professores estaduais) levantou, pela ordem,
os seguintes problemas: superlotação em sala
(73%), falta de material didático (67%), dificuldade
de aprendizagem dos alunos (65%), jornada excessiva (64%),
violência nas escolas (62%).
De acordo com essa pesquisa, 80% dos professores apresentam
o cansaço como um sintoma freqüente, 61% sofrem
de nervosismo, 54% padecem com dores de cabeça e 57%
têm problemas com a voz. Cerca de 46% deles tiveram
diagnóstico confirmado de estresse.
Devemos examinar esse dados com certa atenção
porque, primeiro, vêm de um sindicato, que tende a exagerar
seus dramas para exigir benefícios à categoria,
e, segundo, porque existe uma indústria da licença
médica, vista quase como um direito adquirido para
compensar tantas adversidades.
Mas quem freqüenta escolas públicas, especialmente
na periferia, sabe que, de fato, o professor é massacrado
diariamente -assim como seus alunos são massacrados,
vítimas de uma série de mazelas que acabam afetando
seu aprendizado. O professor é obrigado a lidar com
o aluno que não ouve direito porque não sabe
limpar direito o ouvido, que sofre de dislexia nem ao menos
diagnosticada ou que é vítima da violência
ou do descaso doméstico.
O massacre é crônico, de tal forma que, dificilmente,
se conseguiria atrair talentos para as escolas públicas
-especialmente, para quem mais precisaria desses talentos,
que são os mais pobres. Não atraindo, cria-se
um círculo vicioso da miséria educacional. O
que se nota, além de um absenteísmo enorme,
com ou sem justificativa, é uma rotatividade incessante
de professores e de diretores.
Pense numa das empresas mais sólidas do Brasil e imagine
que os funcionários se comportem como se estivessem
numa escola pública - estressados, desmotivados, nem
punidos por seus erros, nem premiados por seus acertos. E
tudo isso apoiado num forte corporativismo. E, em muitos casos,
como mostrou a Folha na semana passada, com cargos de direção
escolhidos por políticos. Em quanto tempo essa empresa
quebraria?
Oferecer melhores salários certamente ajudaria, a longo
prazo, a atrair talentos. Mas, a curto prazo, nesse massacre
a que estão submetidos os professores, duvido que funcione.
Faz mais sentido oferecer prêmios a escolas que demonstrem
mais esforço e ir, aos poucos, criando exemplos, enquanto
se melhoram as condições de trabalho, os currículos
e os cursos de formação dos docentes.
Nessa briga, não há mocinhos nem bandidos. É,
na verdade, um choque de vítimas, visível quando
uma professora, desesperada, agride um garoto que passou a
vida sendo agredido.
O que dá para dizer, com certeza, é que não
se constrói uma nação civilizada com
professores enlouquecidos.
PS - Preparei no site um dossiê
sobre a saúde dos professores e dos alunos. Podem esquecer
soluções mágicas para o problema da educação:
se não mexermos na questão da saúde tanto
de quem dá aula quanto de quem estuda, não vamos
muito longe.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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