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Os governantes
saberão gastar melhor o que eles arrecadam para gerar
menos esmolas e mais empregos?
Foi lançada, em 2005, uma campanha na cidade de São
Paulo para que os motoristas não dessem dinheiro às
crianças que pediam esmola nos semáforos, baseada
no argumento de que esse tipo de auxílio dificulta
tirá-las das ruas e, ao mesmo tempo, sustenta quadrilhas
de adultos.
Como era previsível, a idéia nasceu cercada
de desconfiança tanto sobre a possibilidade de as pessoas
mudarem de atitude como, principalmente, de o governo oferecer,
em contrapartida ao fim da esmola, um melhor atendimento a
4.030 crianças, que, naquele ano, moravam ou trabalhavam
na rua.
A Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas),
ligada à Universidade de São Paulo, concluiu
em 2007 um novo recenseamento e computou 1.842 crianças
vivendo ou trabalhando nas ruas. Ainda é muito, mas
a queda é de 54%.
A mudança da paisagem das ruas paulistanas é
uma das traduções possíveis da estatística
divulgada, na semana passada, pela Fundação
Getúlio Vargas do Rio, sobre os miseráveis no
país, cuja redução, de 2005 a 2006, foi
de 5,9 milhões de pessoas.
Para muita gente da elite, que vive trancada em condomínios,
trafegando em carros blindados e freqüentando os shoppings,
talvez, a única forma de traduzir a estatística
da miséria sejam as crianças nos semáforos.
Há algo ainda mais profundo por trás desse fato:
nunca tivemos tanta oportunidade de enfrentar com mais intensidade
a pobreza, mesmo em comparação com o nosso período
de crescimento econômico mundialmente invejado.
Seria uma leviandade estabelecer uma relação
direta de causa e efeito entre o aumento da renda, a redução
da população miserável e a população
de rua. No caso paulistano, certamente, pesou a mudança
de atitude dos motoristas, apesar de ainda tímida,
de não dar esmola.
Pesou mais um programa municipal, inspirado no Chile e no
México, de uma ação não só
com as crianças mas com seus pais, oferecendo-lhe uma
série de serviços complementares -e, no limite,
acenando com o risco da perda da guarda do filho ou de processo
aos adultos que exploram a indústria da esmola.
Juntaram-se elementos como o aumento da renda dos mais pobres,
uma presença maior de assistentes sociais nas ruas,
a ação em rede com as famílias e, enfim,
a diminuição do número de pessoas dispostas
a dar esmola -e, assim, se obteve um resultado que, até
pouco tempo, quase ninguém acreditava ser possível.
A razão pela qual escrevo que nunca tivemos tanta oportunidade
de reduzir a pobreza é a confluência, inusitada,
de uma série de tendências favoráveis.
Tantos são os fatores, originários de tantas
articulações espalhadas pelo tempo e nos mais
diferentes lugares, que seria uma asneira apontar um único
autor -ou mesmo um punhado de iluminados- para as mudanças.
Combinam-se inflação baixa, crescimento econômico,
maior escolaridade, menor taxa de fecundidade, elevação
do salário mínimo e distribuição
de recursos para quase a totalidade das famílias mais
pobres.
A escolaridade ainda não está num nível
civilizado, muitíssimo menos sua qualidade. Na média,
a taxa de filhos por mulher é boa, mas esconde o fato
de que, entre as mais pobres, a estatística é
indecente. Todos esses fatores juntos, entretanto, são
potencializados quando estão apoiados em políticas
públicas menos ineficientes.
Baixa fecundidade significa menos demanda por vagas nas escolas,
o que abre espaço para mais investimentos em qualidade.
É possível até mesmo disseminar, com
menos dificuldade, a educação em tempo integral
em bairros pobres, além das creches. Mais escolaridade
significa menor incidência de gravidez precoce porque
as adolescentes começam a ter outras perspectivas de
vida -se o poder público consegue oferecer mais acesso
a métodos anticoncepcionais, atingem-se resultados
com mais rapidez, como demonstram experiências de planejamento
familiar pelo país.
Some-se a isso que estamos produzindo bancos de dados detalhados
sobre a realidade social, permitindo, assim, aprimorar o foco
e estabelecer as metas.
Existem experiências de baixo custo, ilhas de excelência
que oferecem tecnologias sociais capazes de acelerar a redução
da pobreza. O problema é saber se, diante de tantas
ondas favoráveis, o país vai conseguir forçar
os governantes a fazer com que as ilhas de excelência
em gestão pública não sejam apenas ilhas.
E mais: se saberão gastar melhor o que arrecadam para
que gerem menos esmolas e mais empregos.
Mesmo com todas as desconfianças sobre os governantes
e nossa distância de um mínimo aceitável
de civilidade, esse é um Brasil que nunca tinha visto
-e, sinceramente, duvido de que alguém já tenha
visto.
Só vamos mostrando que a democracia, com todos os seus
defeitos, é o melhor mecanismo para gerir conflitos
e produzir desenvolvimento.
PS - A quem quiser ver o que se faz com pouco dinheiro basta
acompanhar os programas do semi-árido brasileiro que
ensinam prefeitos a cuidar de crianças e adolescentes.
Já começam a cair as taxas de mortalidade infantil
e aumentar o número de matrículas escolares.
Incompetência, sem exagero, mata.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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