Junto
aos instrumentos de boxe, surgiram coisas que, provavelmente,
não se vêem em nenhuma academia
Igor Guatelli trilhou, na USP, um peculiar caminho acadêmico.
Depois de concluir o mestrado em arquitetura, fez uma pós-graduação
em filosofia, interessado nas várias formas de apropriação
dos espaços vazios de uma cidade pela população.
Além de ler os livros -buscou orientação
especialmente em filósofos franceses-, ele observava
como garotos de patins davam um novo significado à
marquise do parque Ibirapuera, projetado por Niemeyer, ou
como a convivência criada pela feira de antigüidades
humanizava o imponente vão do Masp, da arquiteta Lina
Bo Bardi.
O que, todavia, o impressionou mesmo não foram as linhas
elegantes do Masp e do Ibirapuera. Em meio a mendigos e a
crianças drogadas que se apropriam de áreas
abandonadas, o arquiteto descobriu um boxeador que, debaixo
de um viaduto, esmurrava um pneu velho, improvisadamente enchido
com areia. Naqueles socos, ele sentiu a tradução
de sua hermética tese de doutorado -e, mais do que
isso, uma chance de tirá-la do papel.
Professor de projetos na Faculdade de Arquitetura do Mackenzie,
Guatelli ficou impressionado, em especial, com a combinação
de elementos trazidos pelo ex-boxeador profissional e treinador
Nilson Garrido, arrumados sob o viaduto do Café, na
Bela Vista: um ringue desnivelado, pneus, uma mola de caminhão
para fortalecer os músculos, uma geladeira para substituir
os tradicionais sacos de areia, bicicletas ergométricas.
O espaço acabou atraindo meninos de rua, mendigos,
carroceiros e aspirantes a boxeador. "Descobri como muitos
dos meninos até chegaram a largar as drogas depois
que começaram a lutar", conta Nilson.
Por causa disso, junto à parafernália de instrumentos
de boxe, em torno da movimentação do ringue,
cercado de dióxido de carbono por todos os lados, foram
surgindo coisas que, provavelmente, não se vêem
em nenhuma academia do planeta: uma biblioteca, especialmente
com livros infantis e juvenis, e uma brinquedoteca. "Nunca
tinha visto nada parecido", comenta Guatelli.
Ele próprio saiu da prancheta e resolveu subir num
ringue para brigar por dinheiro. Sensibilizou alguns de seus
alunos e os levou a redesenhar aquela academia e fazer dela
uma espécie de laboratório para uso dos viadutos.
"Os viadutos têm como função aproximar
pontos distantes, mas acabaram desarticulando espaços
próximos." Seu projeto trataria, então,
de desfazer essa desconexão.
Com o projeto debaixo do braço, ele saiu à caça
de dinheiro com empresários. Bateu em repartições
públicas e recebeu uma informação que
o deixou eufórico. Soube que já estavam planejadas
obras exatamente debaixo do viaduto do Café e que iriam
ter de desalojar temporariamente Garrido. Aproveitou para
pedir que, já que mexeria mesmo naquele lugar, a prefeitura
deixasse prontas as estruturas para montar a academia. "Ficaria
bem mais barato." As obras começaram, de fato,
mas não veio nenhuma resposta.
Guatelli está levando vários socos, mas ainda
não jogou a toalha. "Talvez eu já esteja
aprendendo, debaixo do viaduto, a brigar", ironiza.
veja O Projeto da Academia:
parte
1
parte
2
parte
3
parte
4
parte
5
explicação
Link relacionado:
Uma
alternativa para o viaduto Júlio de Mesquita Filho,
no bairro do Bexiga
Coluna
originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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