O Bolsa
Família funciona como uma reparação de
guerra de uma nação, lamento dizer, de derrotados
Mais uma Bolsa a caminho. Está previsto para o dia
5 de setembro o anúncio do governo federal da distribuição
de dinheiro diretamente aos jovens de 15 a 17 anos, desde
que freqüentem a escola. Imagina-se que, assim, eles
não venham a engrossar as estatísticas educacionais
de evasão escolar e que tenham chance de obter um emprego
no futuro. Faz sentido?
Podemos levantar uma série de dúvidas sobre
até que ponto mais dois ou três anos em uma escola
ruim ajudariam alguém a obter um emprego, especialmente
nas regiões metropolitanas, nas quais se exige mão-de-obra
mais preparada. Mas não se pode negar que o novo benefício
faça sentido se o objetivo final das bolsas é
dar autonomia aos indivíduos, não fazê-los
eternamente dependentes de assistência pública.
Na semana passada, o governo federal divulgou balanço
sobre o Bolsa Família, com reluzentes números:
mais de 41 milhões de pessoas beneficiadas, o que representa
a maior parte da população com menor poder aquisitivo.
Ao ler o perfil dos beneficiários, tem-se a satisfação
de ver que os recursos vão mesmo para quem mais precisa,
mas é inevitável a conclusão de estar
nascendo uma multidão de pais e mães reféns
dos filhos que fazem da paternidade uma profissão.
O que acontecerá quando as crianças crescerem
e os pais perderem a fonte de renda?
O governo alega que está em andamento a articulação
de uma série de programas de diferentes ministérios
para que se ofereça uma porta de saída, ou seja,
condições de o indivíduo não depender
mais de favores oficiais. Fala-se em juntar vários
projetos, desde as aulas de alfabetização, passando
pelo microcrédito, até a capacitação
profissional. Mesmo que esses programas sejam bons, quantos
indivíduos sempre serão dependentes?
Certamente não interessa ao governo dar com clareza
a resposta. O perfil divulgado dos beneficiários das
bolsas sugere que, para muitos deles, dificilmente haverá
porta de saída. Expressiva maioria deles são
de adultos incapazes de ler e entender um texto simples. Há
uma quantidade gigantesca de mulheres chefes de família
com muitos filhos.
Isso sem contar as multidões de brasileiros, cujo acúmulo
de doenças não tratadas fez que perdessem as
condições necessárias de saúde
para manter um emprego. Mesmo com o crescimento das oportunidades
de emprego, pessoas com tais carências têm dificuldades
de entrar no mercado formal de trabalho. Isso significa que
o Bolsa Família não presta? Não, mas
significa que não estão contando toda a verdade.
É evidente que não se deve deter o esforço
de garantir a autonomia dos 11 milhões de famílias
que recebem as bolsas. Articular diferentes ações
nos âmbitos federal, estadual e municipal, auxiliando
na capacitação profissional, certamente trará
efeitos positivos. A experiência mostra que, quanto
mais e melhor se fizerem os chamados arranjos educativos,
aproveitando as vocações econômicas locais,
maior será a chance de emprego. O somatório
dos pequenos arranjos, espalhados pelos municípios,
vai tirar gente daquela lista dos 11 milhões de famílias.
Para os adultos, o Bolsa Família é simplesmente
uma redução de danos. E, aí, funciona
bem. Como o dinheiro vai mesmo para os mais pobres, aumentou
o consumo de alimentos, ativaram-se comércios locais
e melhorou a distribuição de renda. Pesquisadores
começam a perceber mudança no fluxo migratório,
já que as famílias teriam mais condições
de ficar em suas cidades.
Evita-se que sejam obrigadas a viver nas favelas urbanas à
procura de algum bico, vítimas da violência.
Há indícios até mesmo de volta dos migrantes
para sua terra.
O problema é que se paga uma conta passada de uma série
de omissões que vão da falta de atenção
ao ensino básico, passando pela pouca seriedade nos
planos de irrigação, até a pouca oferta
de planejamento familiar. O Bolsa Família funciona,
então, como uma espécie de reparação
de guerra de uma nação, lamento dizer, de derrotados.
Dá para apostar - daí o sentido da bolsa para
os jovens de 15 a 17 anos- menos nos pais do que nos filhos
do Bolsa Família, desde que recebam educação
com um mínimo de qualidade. Pela primeira vez em nossa
história, transformou-se em consenso a idéia
tão óbvia de que a porta de saída começa
no berço. Fora disso, é só redução
de danos.
PS - Um dos piores exemplos sociais brasileiros está
na cidade de São Paulo, onde se criou o "turno
da fome". Por falta de espaço, os estudantes ficam
na sala de aula na hora do almoço. Mas, do vexame,
vemos surgir a força das lideranças locais.
Em vez de esperar pela construção de novas escolas
ou salas, diretores e professores reuniram-se para discutir
a ocupação do espaço e foram achando
pequenas soluções. Sem gastar, conseguiram tirar
114 mil crianças do turno da fome e elas começaram
a ter uma
hora a mais de aula por dia. A porta de saída para
o desenvolvimento social brasileiro é a engenhosidade
comunitária.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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