Os dados
oficiais sobre segurança pública são
uma ilusão. A prova disso está numa pesquisa
reservada da Secretaria da Segurança de São
Paulo, feita neste ano pela Fundação Seade,
sobre as vítimas que não dão queixa à
polícia.
No caso de alguns tipos de roubo e furto, em cada 100 ocorrências,
50 não são notificadas. Vamos traduzir.
Entre maio, junho e julho passados, foram cometidos, apenas
na cidade de São Paulo, cerca de 90 mil roubos e furtos.
O estudo sugere que, talvez, até 45 mil casos estejam
invisíveis, fora das estatísticas.
Estamos falando, portanto, em três meses de roubos
e furtos em uma única cidade, onde, a cada dia, 500
pessoas, atingidas em seu patrimônio, preferem ficar
em silêncio a se dirigir a uma delegacia. A subnotificação
é mais alta dos que os 50% nos casos de agressão,
especialmente contra minorias e mulheres.
A estatística invisível da criminalidade é
uma dica para entender as causas da sensação
generalizada de orfandade, que atinge ricos e pobres - a sensação
de que, todos os dias, estamos vulneráveis em razão
da desproteção oficial, seja a bordo de um avião,
seja caminhando nas ruas.
Olhando os números da cidade de São Paulo,
há motivos para alguma comemoração. Apesar
de ainda estarem altos, alguns indicadores estão melhorando.
Em pelo menos dois itens, a subnotificação é
quase nula: os assassinatos e os latrocínios (roubos
seguidos de morte), que, desde 1999, tiveram uma redução
de impressionantes 71% e 90%, respectivamente. Até
mesmo nos roubos e furtos de automóveis, nos quais
os registros, por causa dos contratos com empresas seguradoras,
são menos imprecisos, também ocorreu queda em
torno de 30%.
Nada disso, porém, serve para acalmar os paulistanos
pela simples razão de que os sinais de desproteção
ainda estão presentes em todos os lados e em todos
os momentos, como se a impunidade fizesse parte de uma rotina
inexorável.
São os carros que param nas faixas de pedestre, os
"flanelinhas" que privatizam as ruas, os telefones
de serviços de emergência que demoram em responder,
os professores que faltam cronicamente nas escolas públicas,
os motoristas que dirigem alcoolizados, os motoboys que zanzam
como loucos, o entulho jogado nas esquinas, as crianças
exploradas que pedem esmolas nos semáforos, as mortes
causadas pela incompetência da administração
das redes de saúde, a crônica demora de uma ação
na Justiça.
Desde 2005, quando se denunciou o mensalão, não
há um só dia, nem sequer um, em que a corrupção
tenha saído do topo do noticiário de política.
Dia após dia, aparecem casos em que estão envolvidos
alguns dos principais personagens do poder, a exemplo do presidente
do Senado, Renan Calheiros. Antes dele, Severino Cavalcanti
foi abatido da presidência da Câmara. Em suma,
a cúpula do Congresso passou a protagonizar casos policiais.
O temor da impunidade generalizada é reforçado
quando vemos a consagração de alguns desses
políticos pelas urnas ou até sua vitória
na Justiça. Na semana passada, Paulo Maluf foi beneficiado
pelo tempo nas acusações que sofre por suposto
superfaturamento de obras -o crime foi prescrito.
Apesar de todos os fartos indícios da existência
de contas suas no exterior, ele não só retornou
à Câmara dos Deputados com extraordinária
votação como se prepara para disputar a Prefeitura
de São Paulo.
Diante de tantos descalabros, imagina-se que o país
esteja moralmente pior. Seria verdade?
A noção de que a corrupção se
espalha como metástase pelo país é histérica.
Não quero dizer que o país seja exemplo de moralidade.
Longe, muito longe disso, mas é uma injustiça
para com o esforço de milhares de brasileiros deixar
de reconhecer que, desde a volta à democracia, aprimoraram-se,
e muito, os mecanismos de controle dentro e fora do governo.
Basta ver os novos poderes dos promotores públicos,
as descobertas das comissões parlamentares de inquérito
e a eficiência policial em desbaratar quadrilhas.
Estamos conhecendo mais bandalheiras porque se construíram
mais e melhores mecanismos de transparência, a começar
pela exposição das contas do governo.
O fato é que, se, nas pequenas coisas do cotidiano,
não percebemos respeito, sempre será mais forte
a sensação de orfandade.
PS - Falo da força das pequenas coisas por ter testemunhado
uma formidável peça de marketing de política
pública em Nova York, batizada de Tolerância
Zero. Ao combater pequenos delitos, visíveis todos
os dias nas ruas, a polícia transmitiu a sensação
de segurança e a população começou
a perceber melhor os demais índices de criminalidade
que caíam. Há, no Brasil, uma demanda pela ordem
no cotidiano. Basta ver a pesquisa Datafolha: graças,
em boa parte, ao combate à poluição visual,
Gilberto Kassab saiu do anonimato, melhorou rapidamente sua
avaliação e já se apresenta (o que parecia
impossível até pouco tempo atrás) como
um candidato competitivo.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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