A relação
entre saúde e educação é mais
óbvia do que a ausência de ranhuras na pista
de Congonhas
Um dos motivos da dificuladade de aprendizado de crianças
e adolescentes é a baixa audição provocada
pela cera acumulada no ouvido. Apenas um cotonete faria um
milagre: o de devolver-lhes a audição. Essa
descoberta foi feita pelo professor de otorrinolaringologia
da USP (Universidade de São Paulo) Ricardo Bento depois
de realizar, em várias regiões do país,
mutirões de saúde.
Estima-se que 18% da população brasileira sofra
de problemas auditivos, causados, em parte, pela falta de
hábitos rudimentares de higiene.
Para centenas de milhares de crianças e adolescentes,
esse detalhe significa não conseguir ouvir direito
(ou nem ouvir) o professor.
O milagre do cotonete mostra como o cotidiano brasileiro é
feito das mais diferentes modalidades de tragédias
anunciadas. Quando a discussão sobre as irresponsabilidades
públicas e privadas atinge as elites, como o caso das
mortes em Congonhas, vemos um enorme barulho -o que, obviamente,
é o certo. Para as tragédias anunciadas dos
mais pobres, o barulho é bem menor, revelando uma surdez.
O milagre do cotonete integra uma tragédia anunciadíssima.
Milhões de brasileiros (sem nenhum exagero) vão
mal na escola simplesmente porque não cuidam de questões
elementares de saúde. Assim, afastam-se da chance de
um emprego e aproximam-se da marginalidade.
O clínico-geral Zyun Massuda convidou um grupo de médicos,
orientados pela professora da USP Mileni Ursich, a fazer um
mutirão de saúde numa escola estadual (Alves
Cruz) num bairro de classe média da cidade de São
Paulo - Zyun estudou ali nos tempos em que a escola pública
conseguia colocar alunos numa disputada faculdade de medicina.
"É espantoso", afirma a professora Mileni,
especialista em endocrinologia, ao conhecer os resultados
dos exames.
Cerca de 15% dos estudantes enxergavam mal - uma estatística
que, aliás, se reproduz em todo o país.
A equipe comandada por Mileni detectou baixa taxa de glicemia
numa expressiva quantidade de alunos.
Traduzindo: eles estavam em jejum prolongado. Traduzindo ainda
mais: extrema dificuldade de concentração devido
à fome.
O que mais chamou a atenção da equipe foram
os 25% dos estudantes que nunca tinham feito um exame médico.
"Se tivéssemos aplicado outros exames, encontraríamos
mais doenças", aposta Zyun. Está certo.
Venho coletando exames de saúde em escolas. Indicam
alta incidência de anemia provocada pela falta de ferro
(mais um fator que impede a concentração), além
de cárie, verminoses e rinite alérgica, sem
contar os distúrbios psicológicos como a dislexia.
Tais dados levam o ministro da Educação, Fernando
Haddad, a afirmar que, sem cuidar da saúde dos estudantes,
os esforços de melhoria do ensino estarão comprometidos.
Tente, caro leitor, tirar os óculos e ler esta coluna
apenas para sentir o tamanho dessa tragédia anunciada
-e, para completar, com um dente doendo. Converta, agora,
o incômodo em números. Levando em conta que temos
cerca de 53 milhões de alunos em escolas públicas
e que as deficiências de saúde que dificultam
o aprendizado podem atingir pelo menos 40% deles, estamos
falando aqui de algo como 21 milhões de estudantes
vítimas dessa tragédia anunciada.
O professor tem dificuldade de ensinar, muitas vezes, porque
padece de problemas de saúde física e mental,
não tratados corretamente. Tudo isso ajuda a explicar
o absenteísmo e o desânimo dos professores, duas
pragas da educação pública.
Para muitos médicos e psicólogos, nada disso
que estou escrevendo é novidade. Não é
novidade nem mesmo para professores. Na lógica da tragédia
anunciada, a relação entre saúde e educação
é mais óbvia do que a ausência de ranhuras
na pista de Congonhas, mas não é debatida nem
gera comoção.
Presenciamos todos os dias tragédias provocadas pela
combinação de irresponsabilidade com ignorância.
Só no trânsito morrem, por ano, 35 mil pessoas
-194 vezes o número de vítimas do desastre de
Congonhas-, sem contar os homicídios. Uma boa parte
disso deve-se ao abuso do álcool: mesmo assim, não
se consegue limitar a publicidade de cerveja.
É como se faltasse um cotonete para melhorar a audição
de todo um país e precisássemos de gritos como
os dos familiares dos mortos de Congonhas para ouvir.
PS - Se Lula tirar do papel o projeto federal de saúde
da escola, cujo lançamento está previsto para
este ano, fará mais pelo aprendizado do que todo o
Bolsa-Família -é exatamente o que acontecerá
se o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, cumprir
sua promessa de criar uma rede de centros de saúde,
com ambulatórios móveis, apenas para detectar
doenças nos alunos. Na lógica da tragédia
anunciada, quase ninguém pressiona (nem pais nem alunos
nem professores) para que programas tão vitais sejam
desenvolvidos.
Veja mais sobre a relação entre saúde
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Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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