Quanto
mais larga a calçada, maior a democracia. Esse princípio,
tão óbvio, está ameaçado pelo
trânsito
A Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes
de Veículos Automotores) informa que o Brasil vai bater,
neste ano, o recorde nacional de venda de veículos.
Em meio a esse aquecimento, esperam-se para este mês
anúncios de grandes investimentos destinados a dar
conta das encomendas; só a General Motors deve fazer
um aporte de mais R$ 1 bilhão. Essa boa notícia
para o emprego significa, ao mesmo tempo, um risco de colapso
urbano e danos à qualidade de vida.
Especialistas prevêem um apagão do trânsito,
com crescente entrada de automóveis nas ruas, especialmente
nas regiões metropolitanas.
A economia se expande, os juros caem e o crediário
está mais acessível. Sem contar a possibilidade,
temida pelos engenheiros de trânsito, de que cheguem
ao país carros baratos vindos da Índia e da
China. Não há nem tempo para abrir ou alargar
tantas ruas para esses veículos.
Para evitar esse apagão em cidades como São
Paulo, os técnicos são unânimes: mais
cedo ou mais tarde, queiramos ou não, será implementado
o pedágio urbano, cujo objetivo é reduzir o
trânsito e drenar recursos aos transportes públicos.
Trata-se de uma questão de civilidade.
Em Londres, a prefeitura enfrentou forte resistência
ao implantar o pedágio urbano. Diante da melhoria da
qualidade de vida, resolveu-se, neste ano, aumentar a limitação
da circulação de automóveis.
O sucesso da experiência londrina teve repercussão
em Estocolomo (Suécia), onde os moradores decidiram,
em plebiscito, criar o pedágio.
A Prefeitura de Nova York, guiada pela idéia de ser
a vanguarda da preservação do ambiente, informou
que quer cobrar
a circulação dos automóveis em dias úteis.
Paris vem lançando uma guerra para garantir espaços
aos pedestres e ciclistas, brigando com os motoristas. Nenhum
dos prefeitos dessas cidades se tornou impopular por causa
dessa batalha por espaço. Muito pelo contrário:
ganharam pontos com o eleitorado. Uma cidade como São
Paulo estaria preparada para esse tipo de medida?
Ninguém quer pagar mais taxas num país onde
já se pagam tantos impostos. Daí que o prefeito
que tiver a coragem política de implantar o pedágio
talvez, no futuro, seja lembrado como um estadista, mas, no
presente, terá de enfrentar pressão. Existe,
porém, em São Paulo, uma saturação
dos congestionamentos que, a rigor, devido ao custo a mais
do combustível e da perda de mobilidade, são
um pedágio disfarçado.
Assim como surpreenderam ao se adaptarem rapidamente às
duras normas da lei contra a poluição visual,
os paulistanos talvez aceitem uma limitação
ao trânsito de veículos desde que convencidos
de sua eficiência. Isso quer dizer melhoria do transporte
público.
Na semana passada, vimos uma pista dessa saturação.
Por causa das férias, a prefeitura decidiu suspender
o rodízio, o que, em tese, seria uma boa notícia
para os donos de automóveis. Quem se sentia aliviado,
neste período, voltou a sentir-se no inferno. Resultado:
muita gente reclamou. Dados oficiais mostraram pioras no nível
de poluição, o que, no inverno, se traduz em
mais crianças com problemas respiratórios.
A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, por
unanimidade, uma lei
que proíbe o estacionamento de automóveis
nas ruas sob o argumento de que, com isso, o trânsito
fluiria. O prefeito Gilberto Kassab disse que iria vetar a
lei por considerar inviável a sua aplicação
neste momento, mas comprometeu-se a ir, pouco a pouco, criando
zonas em que será proibido estacionar.
Reunindo a elite econômica, social e cultural paulistana,
o movimento Nossa São Paulo prepara para o próximo
dia 22 de setembro uma mobilização, o Dia sem
Carro.
A idéia é conscientizar a população
do custo do transporte individual e, a partir daí,
lançar campanhas pelo transporte público e pela
preservação ecológica.
A cidade educada é aquela em que os pedestres são
valorizados, podendo usufruir de largas calçadas, praças
e parques. Quanto mais larga a calçada, maior a democracia.
Esse princípio, tão óbvio, está
ameaçado pelo apagão do trânsito.
Portanto, a euforia da Anfavea, com seus recordes de venda,
talvez se transforme, cada vez mais, num atraso se as cidades
tiverem força para serem mais inteligentes.
PS - Coloquei no site as experiências
de trânsito em Paris, Estocolmo e Nova York. Por
ter vivido em Nova York, sei o supremo prazer que é
viver sem precisar de carro e ter à disposição
as enormes calçadas.
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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