O que
acontece naquele improvável cenário de excelência
educacional mostra o mais terrível aborto
Instalada em cima de uma oficina mecânica numa esquina
movimentada da cidade de São Paulo, uma sala de 120
m2, de teto baixo e com pequenas janelas, é o cenário
de uma experiência de três anos da FIA (Fundação
Instituto de Administração), instituição
associada à USP. Aprende-se ali como administrar talentos
numa situação adversa -e, especialmente, como
recuperar o tempo perdido.
São 27 jovens da periferia, todos de famílias
pobres, que vivem para estudar. No longo trajeto de ônibus
de volta para casa, a maioria deles aproveita para continuar
lendo. A baixa renda familiar, o pouco espaço, a escassa
iluminação e o barulho não impedem esses
jovens de se transformarem num ponto estatístico fora
da curva entre os estudantes das escolas públicas e
privadas: todos entram em boas faculdades -70% deles em cursos
públicos. Neste ano, os alunos do cursinho da FIA acertaram
em média 40 das 63 questões do ENEM.
Estão ainda muito mais distantes do risco das "fábricas
de marginais", apontadas, na semana passada, pelo governador
do Rio, Sérgio Cabral, que defendeu o aborto, ao associar
mulheres de alta fertilidade em famílias desestruturadas
nas comunidades violentas.
Não há nenhum segredo para o sucesso. Além
de esforçados e talentosos, eles recebem ajuda de custo,
de empresas privadas, para que possam sobreviver enquanto
estão naquele misto de quarto ano de ensino médio
com cursinho pré-vestibular. A FIA trata de escolher
professores motivados e acompanhar o desempenho desses jovens.
Uma vez que entram na faculdade, os estudantes demonstram
um desempenho que equivale ou até mesmo supera o de
seus colegas das escolas privadas, que são ajudados
pela bagagem familiar, pela rica vivência comunitária
e pelo acesso a cursos suplementares. Esse fenômeno
é medido detalhadamente em números na Unicamp,
onde se lançou um critério especial para a admissão
de alunos da rede pública.
O que acontece naquela apertada sala em cima da oficina, improvável
cenário de excelência educacional, mostra o mais
terrível aborto.
Há uma série de escolas privadas da elite paulistana
que, por diferentes programas, recebe bolsistas vindos da
periferia. Os professores se emocionam quando falam das conquistas
daqueles adolescentes e de sua capacidade de superar diversidades.
É o sonho de qualquer educador: alunos talentosos e
esforçados, mesmo sem recursos.
Para os bolsistas, já é motivo de comemoração
ter aulas todos os dias. Fiz uma enquete com um grupo deles:
todos lamentam, entre outras coisas, a falta do professor.
O problema é que todas essas bolsas conseguem ajudar
um punhado de alunos -algumas das matrículas das melhores
escolas giram em torno de R$ 1.500 mensais, o que representa
dez vezes mais do que o custo de um aluno de escola pública.
Estamos longe do "voucher" educacional dos Estados
Unidos, que garante a qualquer um a matrícula num colégio
particular se a rede pública for ruim. Na próxima
semana, haverá um plebiscito em Utah (EUA) para oficializar
esse programa, aplicado em diversas cidades.
Por trás da polêmica do "voucher",
há uma ansiedade com a perversidade da perda de talentos.
Uma pesquisa divulgada na semana passada mostrou que 18% dos
estudantes de três escolas municipais de São
Paulo apresentam habilidades acima da média. São
habilidades que vão além de ser bom aluno em
matemática ou em português e incluem as expressões
artísticas, a capacidade de liderança ou a criatividade.
Calcule o que significam 18% num universo de 60 milhões
de crianças jovens brasileiros e começará
a perceber a dimensão da tragédia.
Se virou consenso a afirmação de que o diferencial
não só das empresas mas dos países é
seu capital humano, a perda de talentos é o mais terrível
aborto brasileiro, no qual se eliminam candidatos a Caetano
Veloso, Chico Buarque, Adib Jatene, Oscar Niemeyer ou Paulo
Autran.
Em seu lugar, é mais provável que nasçam
tipos como Marcola. Essa troca faz com que o governador Sérgio
Cabral tenha uma dose de razão: a falta de planejamento
familiar não é, nem de longe, a principal razão
da violência (assim como também não é
a droga), mas é uma contribuição na produção
das "fábricas de marginais".
PS - Coloquei no
site casos de sucesso de alunos pobres com altas habilidades,
como o de Danilo Furlan, medalha de ouro nas olimpíadas
de matemática e física, ou Marco Aurélio
Toledo, que saiu de uma escola pública da periferia
e, apoiado, tenta agora estudar em Harvard (EUA). Há
também uma pesquisa com esses alunos, com bolsas em
escolas privadas, sobre como percebem a educação
pública.
E
se tivessem abortado Lula?
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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