Hércules, Hera, Ártemis,
Efestos, Hermes e Dionísio circulam pelas vielas do
Vidigal (favela da Zona Sul carioca) e trabalham muito. Os
deuses gregos servem de referência para mostrar a realidade
do dia-a-dia de algumas profissões típicas da
favela - tema do documentário Vidigal Olimpo, primeiro
longa de Luciana Bezerra, Pedro Rossi e Gabriela Maciel, do
grupo Nós do Morro.
O moto-taxista, o catador de ferro velho, o carregador de
material de construção, o prestamista (vendedor
em domicílio de utilidades domésticas a prestação),
a rezadeira, o sambista e as mulheres que tomam conta das
crianças são os personagens da vida real focados
em toda a sua grandiosidade e, até mesmo, heroísmo,
pelo documentário.
Em seu cotidiano, eles quase sempre passam despercebidos.
“Queremos mostrar que estes trabalhadores, que representam
99% das pessoas da comunidade, acreditam no que fazem, acordam
às 5h da manhã todos os dias. São verdadeiros
deuses glorificados”, explica Luciana.
A idéia surgiu da observação de alguns
profissionais da comunidade, como o catador de ferro-velho,
que chega a carregar até três geladeiras nas
costas.
“Era a visão do próprio Hércules.
Se uma pessoa não acredita na vida, o que faz ela acordar
cedo para pegar em um batente destes?”, admira-se a
cineasta. Luciana é, ela mesma, uma personagem curiosa.
Moradora do Vidigal desde a adolescência, aos 30 anos
já contabiliza 14 anos de experiência como atriz,
além de ser diretora e roteirista de um curta-metragem
premiado, o Mina de Fé - romance ficcional sobre o
relacionamento entre uma menina e um chefe do tráfico
de uma favela. Inscrito no concurso de roteiro da Rio Arte
em 2002, faturou o primeiro lugar e levou R$ 50 mil para sua
realização.
Um filme ou uma casa?
Fascinada por cinema, quando criança Luciana
começou a sonhar com uma vida de atriz de Hollywood.
Contrariando a vontade da mãe, que sonhava com uma
carreira universitária e não media esforços
para que a filha estudasse, ingressou num curso de teatro
aos 16 anos, logo no início do Nós do Morro.
“Passei um tempo da adolescência em crise com
a minha escolha. Minha mãe só faltava pedir
por favor para eu estudar. Não sabia como contar para
ela que meu negócio era o teatro”, revela ela,
que concluiu o ensino médio.
Na época, Luciana começou a trabalhar como
recreadora em uma creche, em busca de uma profissionalização
ainda indefinida. “Não sabia bem qual era o meu
dom, mas tinha que começar por alguma coisa”,
conta. A mãe, técnica em enfermagem, foi começando
a se acostumar com as escolhas da filha e não chegou
a se surpreender quando ela afirmou que investiria os R$ 50
mil do prêmio na realização do filme.
Já o pai ficou chocado, e perguntou por que ela não
investia o dinheiro num imóvel.
“O mais sensato para ele seria comprar uma casa. Fui
conversar para explicar que este prêmio poderia abrir
muitas portas no futuro e que fazer o curta era como obter
um diploma de faculdade”, lembra. Quando o filme ficou
pronto e foi exibido no Cine Odeon, no Centro da cidade, o
pai estava lá e constatou a importância do investimento.
“Ele veio até a mim para parabenizar pelo 'diploma
da faculdade'. Foi muito fofo. Afinal, o que é uma
casa perto de um sonho realizado?”, emociona-se.
Mesmo sem cursar a universidade, o talento de Luciana foi
destaque no grupo de teatro do Nós do Morro. “Ela
era muito aplicada e estudiosa, corria atrás dos mais
diversos livros sobre história da arte, teatro e cinema.
Trabalhou muito para lapidar sua vocação”,
observa Vinícius Reis, um dos coordenadores do Núcleo
de Cinema do Nós do Morro.
Na corda bamba
Assumir a profissão de artista não
foi fácil. “O artista vive numa corda bamba.
A corda balança o tempo todo e embaixo não tem
rede para te segurar”, compara. Mas os altos e baixos
da vida de atriz-roteirista-diretora não desanimam.
E ela aproveita o que considera uma melhora da cena artística
carioca para lançar novas idéias.
De 2000 para cá, diz Luciana, as coisas começaram
a acontecer mais. "Quando a gente confronta as nossas
questões com as de outros artistas, até os que
têm mais grana, percebemos que são as mesmas”,
analisa. O processo de criação é intenso.
Atualmente afastada dos palcos, ela se dedica a escrever roteiros,
contos e crônicas, além de dar aulas de cinema
nas oficinas do Nós do Morro. Os temas e estilos são
os mais diversos, incluindo contos marginais e crônicas
femininas.
A temática feminina e a dificuldade dos relacionamentos
humanos estão entre os assuntos preferidos. “Importante
é tratar da dimensão humana. Somos todos muito
parecidos. E a vida gira em torno das relações,
como mãe x filho e homem x mulher. É claro que
a situação é mais complicada para a mulher
de favela, que ainda não tem noção da
evolução que tem pela frente”, diz ela.
Filhos só no futuro
O cotidiano de Luciana é muito diferente do
da maioria das mulheres de sua idade no Vidigal, muitas já
com filhos no colo. A maternidade é um sonho que ela
joga para o futuro, mesmo diante de uma certa pressão
da 'família tradicional mineira': "Ainda não
cheguei neste estágio...”, admite a caçula
de três irmãs.
Até lá, ela ainda há de aprontar um
monte de arte. Além de Vidigal Olimpo (ainda sem data
para ficar pronto), das aulas, dos textos literários
e dos diversos roteiros que nascem de idéias súbitas,
ela pensa em inovar ainda mais. “O momento do Brasil
é para dar a cara a tapa. Pensamos numa instalação,
não é cinema nem teatro. Os artistas plásticos
vão nos matar!”, provoca, brincalhona.
A idéia, na verdade, é construir uma espécie
de barraco, onde as pessoas entrem, abram as “janelas”
(representadas por telas de vídeo) e escutem os diversos
sons da favela enquanto assistem às imagens. “Por
enquanto é só uma idéia. Queremos passar
a sensação desta coisa de todo mundo morar próximo
um do outro, com uma diversidade enorme de sons”, conta.
Favela nos festivais
O cinema continua ocupando o local mais alto de seu
Olimpo particular. Após finalizar o curta Mina de Fé,
ela tenta exibi-lo sempre que possível. Selecionado
para o Festival Internacional de Curtas de São Paulo
será exibido na próxima terça-feira,
dia 31 de agosto. Também participa da seleta lista
de curtas do Festival do Rio em outubro. “É maravilhoso
estar participando destes festivais. Vai haver muita troca
com outros cineastas e muitas críticas importantes”.
As críticas, aliás, não parecem assustar
essa carioca espevitada que sabe aprender com o erro e com
a dificuldade. “Filmar o Mina de Fé foi um grande
aprendizado. Tinha um trecho do roteiro que todos diziam que
estava mal resolvido, era uma parte que eu considerava importante
e não mexi até começarmos a rodar”
conta.
No final das filmagens, prejudicadas por uma semana inteira
de chuvas torrenciais, algumas cenas precisaram ser cortadas
e remodeladas. Com a equipe estafada e prestes a se dissolver
para cumprir outros compromissos, Luciana tinha apenas um
dia para resolver tudo. “Passei a noite em claro e pedi
a Santa Bárbara para me iluminar, já que ela
tinha mandado aquele monte de chuva. No dia seguinte, cheguei
no set com um novo roteiro, mesclei a tal cena complicada
com uma outra e joguei para o começo do filme. Ficou
muito melhor”, entusiasma-se.
Para os futuros artistas, ela ensina: “Fale de você!
Olhe para o que acredita e vai encontrar alguém para
te entender. A gente não está isolado e é
isso que faz a rede!”. Luciana acha que o principal
obstáculo para os jovens de comunidade é acreditar
que é impossível superar o muro invisível
que separa o asfalto da favela. “É um muro mais
cruel do que o de Berlim. As pessoas acreditam que o povo
daqui é meio esquisito. Mas a única diferença
está no dinheiro na carteira e no tipo de cartão
de crédito”, analisa.
Sem perceber, ela virou exemplo para os outros. Ao ser premiada
e reconhecida, estimulou os mais novos e tornou os cursos
de cinema cada vez mais concorridos. “Luciana fez parte
da primeira turma, em 1996. Quando os trabalhos dela e do
Gustavo Melo começaram a dar resultado, outros jovens
da comunidade passaram a acreditar no audiovisual”,
revela o professor Vinícius Reis.
MARIANA LEAL
do site VivaFavela
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