|
Mostrar a cara das comunidades da
Amazônia para o resto do Brasil e fortalecê-las,
para que continuem a produzir de maneira sustentável,
é uma das propostas do projeto Saúde&Alegria
-que atua em 150 comunidades na área da Floresta Nacional
dos Tapajós e da Reserva Extrativista Tapajós/Arapiuns,
situada no Médio Amazonas Paraense. Nesta entrevista,
o médico infectologista Eugênio Scannavino Netto,
um dos coordenadores e fundadores do projeto, fala sobre o
trabalho desenvolvido no local e sobre a necessidade de se
promover o que chama de "amazonização do
Brasil".
"Somos nós, brasileiros, que constituímos
ameaça à Amazônia. Temos que assumir a
responsabilidade sobre esse território e para isso
precisamos conhecer de perto a Amazônia real. É
só observar: onde tem comunidade extrativista, a floresta
está preservada", diz ele.
Para sensibilizar os brasileiros, o projeto instalou recentemente
no Jardim Botânico do Rio de Janeiro o Amazônia
Brasil – evento que contou com uma exposição
de fotografia, palestras, oficinas, artesanato, contadores
de histórias e a participação de comunidades
e ONGs da Amazônia. Cerca de 12 mil pessoas passaram
pelo Amazônia Brasil, entre julho e agosto. Agora, o
evento segue para Europa.
Viva Favela - Qual o principal objetivo do Amazônia
Brasil?
Eugênio Scannavino Netto - As pessoas não
têm noção do que seja a Amazônia
real, ora a imaginam como uma floresta densa e inexplorada,
ora a associam à devastação. Muitos ignoram
o fato de que ali tem gente, de que ali vivem comunidades
extrativistas, índios, pescadores artesanais, seringueiros,
quebradores de coco, ribeirinhos, e toda sorte de pessoas
que dependem da floresta para sobreviver, e sobrevivem sem
destruí-la, de forma sustentável. São
exatamente essas comunidades que podem salvar a Amazônia.
É só observar que onde tem comunidade extrativista,
a floresta está preservada. Eles tiram tudo dali: palha
para usar na casa, alimentação, remédio,
óleo, borracha, e não têm a cultura do
desperdício. Então, a proposta do Amazônia
Brasil foi voltar o olhar do brasileiro para essa realidade,
buscar parcerias e fazer com que o maior número de
pessoas ajude as comunidades extrativistas a viabilizar a
chamada "economia da floresta em pé" - muito
mais lucrativa a longo prazo do que a economia da floresta
derrubada.
O que ficou do intercâmbio, promovido durante
o Amazônia Brasil, entre jovens da Amazônia e
de centros urbanos como Rio e São Paulo?
Em São Paulo (onde o evento foi realizado
antes) foi feita a Carta dos Jovens pela Amazônia, o
Meio Ambiente e a Paz Mundial, entregue em Joanesburgo, África
do Sul, durante a Rio + 10. No Rio de Janeiro foi estabelecida
uma rede de comunicação entre os jovens da Amazônia
e de projetos sociais cariocas, como os da Fundação
São Martinho, Observatório de Favelas, Projeto
Jovens do Futuro, FARCs (Federação de Rádios
Comunitárias), entre outros. Esses jovens documentaram
o evento, montaram uma agência de notícias (Amazônia
On-line: www.amazoniabr.net). Os jovens da Amazônia
presentes no evento do Rio conheceram o Morro Dona Marta e
ficaram impressionados com a maneira como se vive numa favela,
eles não entendem muito a questão da violência.
A idéia é que mantenham esse intercâmbio
via Internet pelo e-mail suruaca@saudeealegria.org.br –
contamos com dois telecentros comunitários com esse
propósito. Em 2005 começa a agenda européia
do Amazônia Brasil e, como será o ano do Brasil
na França, nós estaremos lá para buscar
apoio e divulgar o projeto.
Como vivem as comunidades amazônicas, qual
a infra-estrutura?
O quadro social na Amazônia é péssimo,
não há circulação de moeda, a
economia é feita com base na exploração
de madeira e soja, por grileiros, fazendeiros, garimpeiros.
É muito cruel. Os produtos de lá, feitos pelas
comunidades extrativistas, não são aproveitados.
Nas cidades existem grandes favelas ocupadas por extrativistas
que foram perdendo terra para pecuária, por exemplo,
e também por outras pessoas expulsas da própria
terra. Essas comunidades não têm acesso à
saúde, à educação, ao crédito.
Conhecemos, por exemplo, um ribeirinho de Santarém
(PA) que desejava montar uma marcenaria para trabalhar com
restos florestais mas não tinha dinheiro para comprar
um prego ou serrote. Ele ia tentar a vida na cidade mas fizemos
microcrédito e ajudamos ele a comprar o que precisava
e abrir a marcenaria na sua própria comunidade.
É comum ver pessoas temendo a internacionalização
da Amazônia...
Muitos pensam que a Amazônia é ameaçada
exclusivamente por estrangeiros, mas não, são
os garimpeiros do sul e do sudeste, são os pecuaristas
do sul, somos nós, brasileiros, que constituímos
a ameaça. Temos que assumir essa responsabilidade e
"amazonizar" o Brasil. Caso isso não aconteça,
será que o mundo vai assistir passivo à gente
detonando o "pulmão mundial"? Só para
citar um exemplo, o maior consumidor de madeira ilegal da
Amazônia é o estado de São Paulo. Vale
lembrar que 90% da extração de madeira é
feita de maneira predatória e apenas 10% de forma sustentável.
Mas o processo de extração sustentável
é mais caro e não consegue competir com o ilegal.
Por isso, é preciso dar incentivo aos processos sustentáveis.
A estratégia de preservação é
social, e quando falamos em questão social, sobretudo
na Amazônia, falamos em meio ambiente. Ao dar condições
para que as comunidades extrativistas se mantenham na floresta,
estaremos colaborando para a preservação.
Existem muitas organizações atuando
na Amazônia para fortalecer as comunidades nativas?
Existem cerca de 550 projetos sendo implementados
em diversas áreas: agricultura agroflorestal, manejo
madeireiro sustentável, caça e pesca, ciência
e tecnologia, entre outros. Nós já sabemos o
que tem de ser feito, mas a questão é que a
tecnologia está pulverizada em experiências localizadas.
A idéia é divulgar essas experiências
para que possam influenciar políticas governamentais.
O que vocês encaram como os principais problemas
ambientais na região?
Entre os principais problemas está a devastação
causada pela soja e pela pecuária (que provocam o corte
raso da vegetação), a grilagem de terra (ocupação
ilegal para cultivo de soja e pecuária) e também
a contaminação das águas. Nenhuma cidade
da Amazônia tem sistema de tratamento de esgoto. O lixo
- inclusive o hospitalar – é jogado nos rios.
As pessoas morrem por terem bebido água contaminada,
a mortalidade infantil causada por esse motivo fica em torno
de 70 por mil. Como problemas enfrentados, também posso
destacar as queimadas, a pesca predatória e o garimpo,
que contamina a água com mercúrio.
E qual a solução?
A Amazônia precisa de medidas muito simples.
Por exemplo, para colocar cloro e tratar a água, o
custo é de R$ 0,07 por família, um poço
semi-artesiano para abastecer em torno de 30 famílias
tem custo de aproximadamente R$ 500 e uma pedra sanitária
(pedra que veda o buraco da fossa cavada e interrompe o ciclo
de contaminação) representa um custo de R$ 7
por família. Essas medidas foram colocadas em prática
nas 150 comunidades em que atuamos. Nesses locais, baixamos
a mortalidade infantil de 70 para 23.3 em mil. Mas para adotar
medidas simples como essas é preciso ter vontade política.
São muitas as necessidades, como por exemplo dar incentivo
às trocas regionais, criando mercado local para produtos
da Amazônia e diminuindo a dependência de importação.
De que maneira se estrutura o trabalho do projeto
Saúde&Alegria nas comunidades da Amazônia?
Começamos atuando em 16 comunidades, e agora
já estamos em 150, fazendo um trabalho que envolve
30 mil pessoas na área da Floresta Nacional dos Tapajós,
da Reserva Extrativista Tapajós e Arapiuns e no entorno
(Unidades de Conservação situadas nos municípios
de Santarém, Belterra e Aveiro). Contamos com uma equipe
de 60 pessoas que mantêm contato por rádio com
todas essas localidades e faz visitas sempre que necessário.
Temos também um Conselho Intercomunitário, que
conta com líderes de cada uma dessas comunidades. Nosso
projeto é também de capacitação
comunitária - a gente entrega a tecnologia mas eles
têm que se apropriar dela. Há cerca de dois anos
demos início ao projeto Saúde na Floresta nas
comunidades em que atuamos, com financiamento do BNDES e outras
parcerias. Trata-se de um amplo programa de higiene e saneamento.
Atualmente, todas as comunidades contam filtros, cloro, poços
artesianos (um sistema de bombeamento manual da água
do poço perfurado). Estão sendo implantados
sistema de abastecimento de água e também sistemas
de energia solar nos centros comunitários (nos postos
de saúde, escolas, barracão de reuniões
e centros culturais).
Como é feito o trabalho de educação
ambiental?
Fazemos trabalhos em seis núcleos de atuação
– Organização Comunitária; Saúde
Comunitária; Produção Agroflorestal e
Meio Ambiente; Gênero Mulher Cabocla; Educação
e Cultura, e Comunicação Popular e Juventude.
Mas todo o trabalho da ONG é perpassado pela educação
ambiental. Contamos com 150 repórteres rurais treinados
pela Rede Mocorongo de jornalismo comunitário –
constituída por jovens repórteres que produzem
programas de rádio, vídeos e jornais comunitários.
Isso é fantástico porque esse grupo recebe o
material necessário para fazer um jornal que é
difundido espontaneamente e cresce a cada dia. Esse trabalho
valoriza o resgate da cultura e coloca esses jovens como protagonistas
nas comunidades. Nós damos início e acompanhamos,
mas são eles quem desenvolvem um verdadeiro processo
de educação horizontal. Também desenvolvemos
ações como formação de fiscais
ambientais e monitores mirins, rearborização
comunitária, combate ao fogo, campanhas como a de coleta
de pilhas descartadas. Além de trabalhos de reciclagem
de lixo no Circo Rebolixo – uma metodologia lúdica
onde as crianças aprendem desde cedo os cuidados com
o lixo e a necessidade de reciclar para fazer produtos, brinquedos
e materiais didáticos.
O que representa o repasse de 107 mil hectares de
terras da Flona (Floresta Nacional dos Tapajós), da
União para o IBAMA?
Antigamente, o Ibama não aceitava a permanência
das comunidades nessas terras acreditando que elas fossem
nocivas à reserva florestal que ocupam. Mas acontece
que a reserva foi criada numa área onde já existia
morador, e foi uma luta fazer com que o governo aceitasse
que esses moradores são os verdadeiros donos da floresta.
Agora, passando da União para o Ibama, é possível
fazer a concessão de uso dessas terras. A medida é
importante para que continuem a existir áreas de florestas
preservadas por essas comunidades, que vivem de maneira sustentável.
O que acha do projeto do governo federal de regular
o acesso e uso dos recursos florestais?
Pode ser positivo ou muito negativo. Tudo vai depender
da capacidade de fiscalização do governo. É
melhor que uma empresa esteja trabalhando em área cedida
pelo governo, passível de fiscalização,
do que em uma área devoluta (sem documentação
regular). Acho positivo colocar a floresta toda sob algum
tipo de legislação especial. Vale lembrar que
23% do território da Amazônia é de propriedade
privada, 3,55% são reservas e todo o resto são
áreas devolutas. Ou seja, muitas são de comunidades
que não têm documentos e por isso são
invadidas por fazendeiros, grileiros. Se isso for regulado
tem como fiscalizar, como penalizar, e assegurar permanência
das comunidades tradicionais nessas terras.
Existe algum projeto no sentido de incentivar o engajamento
de jovens brasileiros em trabalhos sócio-ambientais
na Amazônia?
Os gestores – ONGs, escolas - teriam que estar
mais capacitados para incentivar o jovem a buscar uma visão
mais realista da Amazônia. Um índio que veio
ao Rio por conta do Amazônia Br me perguntou: "Por
que as crianças daqui, quando me encontram, fazem o
som `uúúúú` e batem na boca?"
Eu respondi que esse é o barulho dos índios
dos filmes americanos. O índio brasileiro ficou triste
ao saber dessa resposta. Infelizmente, não conheço
trabalhos com o propósito mencionado. No Saúde&Alegria
temos o projeto Bagagem (www.projetobagagem.com.br) destinado
aos turistas que desejam conhecer a Amazônia mais de
perto, de maneira mais realista, convivendo com as comunidades
extrativistas, ribeirinhas, ficando hospedadas na casa dos
povos nativos.
JULIA DUQUE ESTRADA
do site EcoPop
|