Sucesso nas rodas de samba e bailes
do Rio em 1960, o samba Favela Amarela rendeu à cantora
Araci de Almeida o título de Rainha do Carnaval. Composta
por Jota Júnior e Oldemar Magalhães, a música
(Pintem a favela / Façam aquarela da miséria
colorida) brincava com um projeto polêmico do ano anterior
que previa a pintura de todos os barracos cariocas. A idéia
foi proposta por Mário Saladini, então diretor
de Turismo e Certames do Rio. Ele achava que as cores poderiam
melhorar “o aspecto estético e higiênico”
das favelas e transformar os morros em atração
turística. Líderes comunitários e boa
parte da opinião pública não receberam
bem a proposta.
Saladini foi acusado de hipócrita. “As favelas
poderiam até ficar mais bonitas, mas os moradores continuariam
sofrendo do mesmo jeito. O projeto gerou muita polêmica,
e ainda teve essa história do samba. Mas depois as
pessoas acabaram esquecendo”, lembra José Maria
Galdeano, o Juca, na época secretário-geral
da Federação das Associações de
Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg). “A Fafeg não
levou a idéia muito a sério”, explica.
O projeto não saiu do papel mas o autor da idéia,
o paulista Mário Saladini, acabou se elegendo deputado
nas três eleições seguintes. Em entrevista
recente, ele explicou como surgiu a proposta. “Eu estava
na Venezuela quando passei por um bairro pobre de Caracas
que tinha as casas pintadas. Apesar de humilde era um local
bastante agradável. Quando cheguei no Rio contei essa
história para um jornalista amigo meu do Diário
Carioca. No dia seguinte o jornal publicou: ‘Saladini
quer pintar as favelas”, conta.
“Logo depois, o Dom Hélder (criador da Cruzada
São Sebastião, então arcebispo do Rio)
começou a me esculhambar nos jornais. Ele deu entrevista
nos três canais de TV da época e eu comecei a
responder. A história rendeu tanto que eu acabei me
elegendo três vezes nessa brincadeira”, admitiu
Saladini, que ainda nos anos 60 ficaria conhecido como um
dos fundadores do Clube dos Cafajestes, grupo formado por
jovens de alto poder aquisitivo de Copacabana, que incluiu
figuras ilustres como Jorginho Guinle e Ibrahim Sued.
Favela verde-e-rosa
Quatro décadas após a polêmica,
Álvaro Caetano, o Alvinho, que acaba de ser reeleito
presidente da Escola de Samba Mangueira, prometeu durante
a campanha deste ano pintar todos os barracos da favela em
tons de verde-e-rosa. Mas Alvinho garante que qualquer semelhança
com o projeto dos anos 60 é pura coincidência.
“Confesso que não lembro do samba e nem conhecia
o projeto do Saladini. Essa idéia é um sonho
meu desde criança. Mas não vai ser nada rígido.
Os moradores vão poder escolher entre tons de verde-e-rosa
ou usar até uma outra cor. O que importa é ficar
tudo pintadinho”, explica Alvinho, que negocia verba
para a compra do material com diversas empresas.
“A pintura vai ser feita em mutirão. Algumas
figuras ilustres do morro, como Carlos Cachaça e Delegado,
já têm suas casas pintadas com as cores da Mangueira.
Na maioria das vezes, as pessoas preferem investir o pouco
que tem para comprar um fogão melhor, uma geladeira,
um som, e acabam não dando um acabamento por fora.
A pintura pode melhorar a auto-estima dos moradores e quem
sabe transformar a favela em cartão-postal”,
planeja.
Há quatro anos a Rocinha recebeu um projeto semelhante.
Só que, mais uma vez, a repercussão entre os
moradores não foi das melhores. Batizado de Rocinha
de Cara Nova, o programa de reforma incluiu apenas os imóveis
junto à Auto Estrada Lagoa-Barra, pintados em tons
de amarelo. Os moradores aprovaram a idéia mas criticaram
a falta de manutenção e a pouca abrangência.
“Achei estranho terem pintado só as casas lá
de baixo. Fica bonito para quem passa mas quem mora na favela
sabe que existem muitos outros problemas”, afirma Francisco
Ferreira Filho, o Cabo Chico, que durante muitos anos foi
presidente da Velha Guarda da Acadêmicos da Rocinha.
“Sou do tempo em que a maioria dos barracos da favela
eram pintados. Aqui no morro predominava o branco e o azul.
As casas eram de madeira e ficava mais fácil”,
explica.
Fundador e três vezes presidente da associação
de moradores do Morro do Chapéu Mangueira, no Leme,
o mineiro Lúcio Bispo lembra que a altura dos barracos
de antigamente também facilitava a pintura. “Hoje
em dia as casas têm dois, três andares, fica mais
complicado”.
Sobre o antigo projeto de Saladini, Bispo conta: “A
Fafeg desde o início não levou a idéia
a sério. É igual apelido, nesses casos quanto
mais polêmica pior. Mas de qualquer forma éramos
contra porque sabíamos que seria impossível
esconder ou disfarçar a pobreza só pintando
as casas. Não é tão fácil assim”.
Depois de declarar que as favelas cariocas vão ter
seus barracos pintados com cores diferentes para melhorar
seu aspecto ante os olhos dos visitantes, Mário Saladini,
diretor do Departamento de Turismo e Certames da Prefeitura,
disse que com a “miséria colorida”, as
favelas tomarão aspecto higiênico e até
estético.
Acrescentou que o Departamento de Turismo instituirá
uma série de prêmios que serão conferidos
aos que apresentarem à pintura dos barracos em melhores
condições, com o objetivo de trazer para a campanha
a maior solidariedade das favelas, que receberão tintas
para o serviço.
A pintura das favelas obedecerá a um plano previamente
estudado por artistas competentes no gênero. Para isso,
esclareceu Saladini, as favelas serão fotografadas
e sobre essas fotografias escolhidas as cores adequadas. Concluído
esse serviço, as fotografias serão levadas aos
moradores das respectivas favelas com a explicação
do programa.
“O Departamento de Turismo iniciará depois um
movimento de largas proporções, a que dará
o nome de ‘Campanha da lata de tinta’, para aquisição
do material de pintura a ser oferecido em caráter gratuito,
quando for o caso, aos faveladas que, por sua vez, farão
a limpeza dos barracos sob a supervisão de funcionários
do Departamento”, explicou Saladini.
A seguir, disse o diretor do Departamento de Turismo: “O
problema da habitação miserável, que
no Distrito Federal tomou o nome de favelas e no Recife de
mocambos, é universal. Encontrei esse mesmo problema
na Europa e na América. No próprio Estados Unidos,
ele existe e até aqui nenhum governo conseguiu resolvê-lo.
Mas podemos melhorar seu aspecto e até transformá-las
numa atração turística. Hoje elas são
um nódoa negra, pregada nos morros, à vista
de visitantes, mas com o plano do Departamento, as favelas
se apresentarão com um aspecto decente de limpeza”.
As Cores
Falar em Dom Hélder lembra favela, e falar
em favela lembra logo a onda de demagogia que se anda fazendo
porque o Sr. Mário Saladini, diretor do Turismo, se
propôs a dar tinta aos favelados para que pintassem
os seus barracos. Acho que nessa história está
havendo é muita falta de compreensão. Afinal
o homem não é diretor da Sursan, nem da Saúde
Pública, nem da Casa Popular, nem da Reabilitação
das Favelas. É diretor do Turismo, só. A função
dele consiste, apenas, em procurar fazer a Cidade atraente
aos olhos dos estranhos que nos visitam. Todo o mundo sabe
e deplora - as favelas são uma chaga social, uma vergonha,
uma tragédia. Mas o diretor do Turismo não é
culpado disso, nem tem autoridade para interferir no problema.
Ele é unicamente uma espécie de maquilador da
Cidade - encarregado de tapar cicatrizes e espinhas, apresentar
uma face bonita em cima da velho cara escavacada. Tratar da
saúde do doente é com os outros - o papel dele
é só mesmo o de pintar.
Poder-se-á alegar então que cuidar de turismo
num tempo em que todo mundo passa fome é uma futilidade.
Mas isso são outros quinhentos mil-réis. Mesmo
porque, turismo já não é mais brincadeira,
é indústria, e por toda parte rende dólares
aos milhões. O daqui não rende porque ainda
não há; turismo houvesse, dando dinheiro, quem
sabe se poderia com ele urbanizar as favelas? Embora eu duvide
que, depois de apanhar o cobre, a turma fosse se lembrar de
favelado. Diriam logo que era pitoresco, que as favelas são
uma tradição da cidade...
As informações são do site Viva Favela.
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