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Presidiários, estudantes,
empresários, meninos de rua, donas-de-casa. O perfil
dos que já 'aprenderam a respirar' com a Arte de Viver
- uma ONG que atua em mais de 140 países - é
o mais variado. Porque respirar é muito mais importante
do que parece. E tem papel fundamental para o bem-estar físico
e emocional. Especialmente ao reduzir o estresse e aumentar
o auto-conhecimento.
Nesta entrevista, a argentina Eng-An Chou, coordenadora no
Brasil da Arte de Viver, uma das maiores organizações
humanitárias do mundo, fala sobre a experiência
da ONG em comunidades de baixa renda que já participaram
de cursos voltados para combater o estresse e elevar o nível
de consciência e vitalidade.
No Brasil, a Arte de Viver já trabalhou com catadores
de lixo em São Paulo, e com moradores de comunidades
de Salvador (Bahia) e de Duque de Caxias (Rio de Janeiro).
Agora, busca apoio para ampliar sua ação no
país. Fundada em 1982 pelo pacifista indiano Sri Sri
Ravi Shankar, a ONG desenvolve trabalhos nas áreas
social e de educação e tem estatuto especial
de consultora no Conselho Econômico e Social das Nações
Unidas (ONU).
De que maneira se desenvolve o trabalho da Fundação
Arte de Viver?
Um dos nossos trabalhos principais é de combate
ao estresse, porque acreditamos que o estresse alimenta a
violência, as doenças físicas e emocionais.
Neste sentido, oferecemos vários cursos que têm
como base técnicas de respiração. Partimos
do princípio de que a respiração tem
um papel fundamental na maneira como nos sentimos física
e emocionalmente. Desta forma, respirar é também
aumentar o nosso nível de consciência sobre tudo
o que nos diz respeito. Nos cursos, damos ferramentas para
que as pessoas possam reduzir o nível de estresse e,
em conseqüência, aumentar o nível de energia,
a concentração, o entusiasmo, enfim, revigorar
a saúde interna (emocional, espiritual) e externa (física).
É um trabalho envolvente porque quando nos sentimos
seres humanos, plenos, temos vontade de nos expandir e de
ajudar aos outros, ajudar nossa comunidade, preservar o meio
ambiente, e assim por diante.
Respirar é então muito mais do que
a satisfação de uma necessidade vital?
Sim. Mais de 80% das impurezas físicas e emocionais
presentes no corpo são eliminadas através da
respiração, mas a maioria das pessoas utiliza
somente 35% da sua capacidade pulmonar. A respiração
é a fonte da vida, é o que temos de mais íntimo,
mas não sabemos como usá-la. Saber como usá-la
de forma consciente, e reservar alguns minutos do dia para
praticar a técnica, pode significar uma grande mudança.
Uma das técnicas que utilizamos é o Sudarshan
Kriya, que se baseia em variados ritmos de respiração.
Existem diversas pesquisas, como a do Instituto Nacional de
Saúde Mental e Neurociência da Índia,
comprovando que o Sudarshan Kriya reduz o nível de
cortisol, que é o hormônio do estresse, e aumenta
o nível de serotonina, hormônio do bem-estar.
Em conseqüência, a depressão e a ansiedade
diminuem e a vitalidade e a concentração aumentam.
Como é a abordagem do curso em comunidades
de baixa renda?
Temos dois cursos que oferecemos para as comunidades
de baixa renda. Um deles se chama Respiração,
Água e Som e o outro seria uma variação
do curso Arte de Viver (considerado um dos principais). O
Respiração, Água e Som é como
uma etapa inicial, uma introdução para o Arte
de Viver. São três dias de duração,
de uma hora e meia cada, mas as transformações
são impressionantes. Falamos sobre a importância
da alimentação, da respiração
e de coisas tão simples como rir. As técnicas
que ensinamos no curso de alguma forma contribuem para a mudança
na percepção de algumas questões, promovendo
também o bem-estar interior. Quando acaba, muitas pessoas
querem mais. Então oferecemos o curso Arte de Viver,
que é um trabalho mais profundo, intensivo, para jogar
fora todo esse lixo que acumulamos com o tempo e que nos faz
mais agressivos, doentes, depressivos, ansiosos, etc. A gente
não varre a nossa casa? Precisamos fazer o mesmo com
nosso "lixo emocional".
A Fundação já realizou cursos
em comunidades brasileiras ?
No Rio de Janeiro, em outubro de 2003, realizamos
o curso A Arte de Viver para cerca de 600 crianças
e jovens e 100 adultos de comunidades como Morro do Sapo,
Morro da Telefônica, Morro Alto da Boa Vista, Mangueira,
entre outros, em Duque de Caxias (Baixada Fluminense). O curso
foi feito na Instituição Afro-Cultural Ojuobá
Axé, que reúne moradores dessas comunidades
para diversas atividades culturais. Eu trabalhava diariamente
com cinco, seis grupos. A princípio, era complicado
para as crianças se manterem em silêncio, sentadas
em uma roda. Os sapatos ficavam jogados pela sala, a bagunça
era total. Mas, a medida que o tempo passava, o que era um
desafio começou a dar resultado. As mães diziam
que os filhos estavam mais limpos e menos agitados, passando
mais tempo dentro de casa. A cozinheira que ficava no andar
de baixo do Instituto me dizia: "Eles passaram a falar
em vez de gritar. Até o passo deles está mais
leve". Em pouco tempo notamos que os meninos conseguiam
resolver as diferenças rapidamente, sem recorrer à
implicância e à agressividade. A coordenadora
do Instituto veio me contar, surpresa, que dois meninos, pouco
depois de terem se desentendido, apareceram abraçados,
falando que já eram amigos e que não tinha por
que ficarem de castigo. Ela disse que isso nunca tinha acontecido
antes.
Neste tipo de trabalho não é mais difícil
envolver os adultos?
Em Duque de Caxias começamos com as crianças,
depois chegamos aos adolescentes e, pelas histórias
que os meninos contavam, percebemos que tínhamos que
envolver também as mães. Eles contavam histórias
duras, de pais muitas vezes alcoólatras, que batiam
neles. A princípio, as mães foram meio contrariadas,
tiveram que ser convencidas pelo Instituto. Já no terceiro
dia estavam todas encantadas. Algumas mulheres que sofriam
de enxaqueca, dores nas articulações, diziam
que já não sofriam mais. Elas me contavam muitas
histórias fantásticas e, dessa vez, os filhos
é que vinham me dizer coisas como: "Tia, minha
mãe está tão calma, ela nem bate mais
em mim". Conseguimos fazer o trabalho com quase 100 mães.
Os seis dias de curso não foram suficientes, fizemos
em dez. Mas nós começamos os cursos no Brasil
em 1998 e em comunidades há cerca de um ano, em São
Paulo e Salvador. Em São Paulo, fizemos o curso Respiração,
Água e Som com catadores de lixo de duas cooperativas,
por três meses. Foi difícil manter eles juntos
por tanto tempo em um trabalho como o nosso, porque o tempo
que eles têm é para levar dinheiro para casa.
Neste caso, o trabalho de envolver os adultos foi duplamente
difícil. Mas os resultados foram muito positivos, disseram
que trabalhavam mais relaxados, com mais vitalidade e alegria
de viver.
O desafio é fazer com que ações
como essa tenham continuidade...
Aqui no Brasil estamos em busca de parceiros para
ampliar o trabalho em comunidades e ajudar a criar uma transformação
real. Gostaríamos de atuar profundamente em uma comunidade
que tenha muito interesse em se transformar e acreditamos
que disseminando nosso trabalho estaremos contribuindo para
diminuir a violência. A idéia é poder
voltar nas comunidades visitadas e criar dentro de cada uma
multiplicadores, pessoas que queiram assumir essa responsabilidade
para dar continuidade ao trabalho. Acreditamos que temos uma
coisa preciosa que pode funcionar, porque temos visto funcionar
em muitos outros lugares do mundo, mas para isso precisamos
de um apoio maior. Na Índia temos muitos voluntários,
na Argentina, milhares. O que temos que fazer no Brasil é
conscientizar as pessoas de que a sociedade pode melhorar
com a participação de cada um. É preciso
criar essa cultura, todos têm que se sentir responsáveis,
é o que chamamos de 'sentido do pertencer'.
E como é feito o trabalho nas comunidades
da Índia ?
Na Índia a Arte de Viver adotou 25 mil vilarejos
e abriu mais de 100 escolas para comunidades de baixa renda.
A mudança é real, as pessoas deixam de consumir
drogas e passam a agir para transformar a comunidade. Lá
o projeto se chama 5H – saúde (health), higiene
(hygiene), habitação (home), harmonia na diversidade
(harmony in diversity) e valores humanos (human values, em
inglês). Partimos da idéia de que é preciso
criar uma estrutura exterior (casa, banheiros, clínicas,
escolas) e também uma estrutura interior – dar
elementos para que as pessoas possam lidar com as emoções
e se educar para os valores humanos. A Arte de Viver financia
a construção das casas mas todos colocam as
mãos para trabalhar. Nas escolas construídas,
a educação tradicional é feita de maneira
integrada com a educação da Arte de Viver. As
crianças aprendem na prática os valores humanos.
Não são apenas teorias. Por exemplo, elas não
jogam o lixo na rua, aprendem a deixar os problemas para trás
e a estar mais centradas no momento presente. Recebem tarefas
como a de fazer um amigo por dia e estão sempre disponíveis
para ajudar os outros. Na área ambiental estamos com
um projeto de coleta seletiva e de conscientização
das pessoas sobre os malefícios das sacolas de plástico.
Eu fico impressionada porque aqui no Brasil tudo é
vendido em saco plástico, mas nas nossas escolas utilizamos
sacolas de pano. O plástico é terrível
para o meio ambiente, não temos nem copinhos de plástico.
Quais os tipos de curso existentes ?
Agora temos dez instrutores no Iraque, já
fizemos um trabalho com os bombeiros que atuaram no resgate
das vítimas do World Trade Center, em Nova Iorque,
entre outros trabalhos de alívio do estresse e do trauma.
Temos cursos focados para presidiários, ex-presidiários
e agentes de penitenciárias. Eu fui chamada para dar
o curso em um presídio de segurança máxima
de Buenos Aires, na Argentina. Foi muito interessante observar
os presidiários, aqueles homens enormes, fazendo todo
o curso em silêncio. Eles disseram que queriam fazer
silêncio para que a palavra não atrapalhasse
a atmosfera de paz. Também temos cursos para portadores
de HIV, pacientes com câncer. No sul da África
realizamos um trabalho com meninos de rua, adolescentes que
fugiram de casa e estavam entregues às drogas. Todos
eles voltaram para casa. Na Argentina, também trabalhamos
com 60 adolescentes de rua. Desenvolvemos trabalhos em empresas
como a Shell, Banco Mundial e em universidades. O curso é
adaptado para cada um desses casos mas os resultados são
sempre os mesmos: bem-estar físico e emocional, elevação
do estado de consciência.
Então o trabalho pode ser feito em qualquer
local, com todas as pessoas ?
Sim, claro. O ser humano está igualmente mal.
O estresse está atingindo todas as cidades, classes,
culturas, religiões. Nas escolas nos ensinam a escrever
mas não ensinam o que fazemos com as emoções
negativas. Quando sentimos raiva, angústia, ansiedade,
fracasso, ambição, ciúmes, depressão,
o que fazemos? Esse tipo de vivência é que é
legal na Arte de Viver, reunimos pessoas de todas as religiões,
culturas, raças. Sri Sri Ravi Shankar costuma falar
que a religião é a casca da banana e a espiritualidade
é a banana. Ele diz que ficamos segurando a casca da
banana pensando que estamos com a própria banana. Na
Arte de Viver a gente observa uma mudança real nas
pessoas. Não é uma coisa teórica, do
tipo: "Você precisa se sentir bem". A pessoa
realmente se sente bem. Mas tem que fazer para saber.
Como costuma ser a receptividade ao trabalho da Arte
de Viver ?
O preconceito está diminuindo. Hoje as pessoas
começam a querer buscar a espiritualidade. A mudança
que aconteceu comigo, por exemplo, foi radical. Eu era uma
pessoa ansiosa, muito estressada. Cursei Relações
Internacionais - Estudos sobre a Ásia e América
Latina - na Boston University, nos EUA, e trabalhei em ONGs
e em uma grande empresa na área de resolução
de conflitos, negociação e mediação.
Depois passei para área de Saúde Pública
Internacional. Conheci Sri Sri Ravi Shankar quando ele ia
fazer uma palestra na Universidade de Harvard. Um amigo praticamente
me obrigou a ver a palestra, depois me obrigou a fazer o curso.
O que me fez querer trabalhar na Arte de Viver foi ver as
transformações reais que se passaram comigo
e com as outras pessoas. Quando notei minha própria
transformação, meu único desejo era expandir
isso para o mundo inteiro.
JULIA DUQUE ESTRADA
do site EcoPop
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