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"A
vida não tem fronteiras. A vida não tem cor.
Mas é preciso fé e esperança para viver",
proclama a canção, entoada em francês
e em dialetos africanos pelo coral Cantos da Paz. O grupo
congrega refugiados e solicitantes de refúgio de diversos
países africanos no Sesc do Carmo, no centro da cidade
de São Paulo. Por meio da música, os cantores
compartilham experiências, criam vínculos afetivos
e tentam superar o trauma da perseguição política,
étnica ou religiosa. Tentam enfrentar a dor da perda,
de deixar a família, a cultura, a pátria para
trás.
Cada cantor tem sua história. Patrick Kasonga, conta
que veio da República Democrática do Congo (RDC)
há um ano e meio. Saiu de lá por motivos políticos.
"Eu fazia parte de um partido político da oposição,
que não faz parte do governo atual, de transição.
Por termos participado de uma passeata pacífica, eu
e outros manifestantes fomos presos. Passamos alguns dias
na prisão. Eu era perseguido pelo governo e então
decidi me refugiar".
Com ajuda de um primo que morava na África do Sul,
conseguiu o visto para entrar no Brasil como turista. Chegando
aqui, apresentou-se à Cáritas de São
Paulo e solicitou o refúgio. Após algumas entrevistas,
seu pedido foi negado. "Não consigo entender.
É surpreendente que o governo brasileiro não
nos conceda o status de refugiado, apesar do nosso país
estar em guerra, de haver a ditadura militar no Congo",
diz.
Hoje, ele sobrevive dando aulas de francês. Pediu
recurso em seu processo e afirma viver com medo. "Vivemos
estressados o tempo todo porque a gente sabe que tudo pode
acontecer a qualquer momento. Apesar disso, não tenho
problemas em me identificar. Eu sou refugiado, não
sei porque o CONARE [Comitê Nacional para o Refugiado]
não aceitou meu pedido e não sei porque me esconderia.
Eu sou refugiado e gostaria de que minha situação
fosse regularizada. Depois, gostaria de estudar teologia na
universidade e de voltar a viver com minha mulher e meu filho,
que ficaram no Congo".
Vangu Mbadu, também congolês, está no
Brasil há três anos. Seu pedido de refúgio
foi negado, bem como o recurso. Ele está, portanto,
ilegal no país e diz que tem que ir embora. Ele afirma
que saiu da RDC por causa da guerra. "Perdi meu pai,
irmão, mãe. Se eu ficasse lá, morreria.
Quando eu estudava em meu país, eu sabia que o Brasil
era um país com dificuldades. Mas na hora que eu estava
fugindo, só estava pensando em sair de lá. Entrei
no primeiro navio que encontrei. Não sabia que eu ia
chegar aqui", diz. Ele conta que hoje sobrevive da solidariedade
dos amigos.
Um outro rapaz, que chegou ao Brasil há um mês
e meio e prefere não se identificar, diz que deixou
sua terra natal para salvar sua vida. Em francês - pois
ainda não aprendeu português -, ele conta que
"há problemas que acontecem na África e
que são realmente bizarros. Há guerras étnicas,
conflitos políticos. Há pessoas que subiram
ao poder e que não querem trabalhar juntos com aqueles
que trabalhavam antes e há atentados, e cargos de confiança".
Ele diz que veio ao Brasil de avião, passando por
Cuba. Hoje, vive em um albergue, alojado por intermédio
da Cáritas. Enquanto aguarda a conclusão de
seu processo para concessão da permanência como
refugiado, ele sonha poder voltar a estudar, trabalhar e formar
uma família. "Quero continuar meus estudos universitários.
Eu estudava eletrônica industrial. Quero recomeçar
minha vida aqui, da forma que todo mundo vive no Brasil. Enquanto
não houver paz no meu país, enquanto houver
guerras que não acabam nunca, eu não posso voltar.
Antes, a gente chamava a África de 'berço da
humanidade', hoje é o contrário. A África
é o berço dos genocídios. Há tantas
guerras, tantos assassinatos, há tantas histórias
inacreditáveis...", lamenta.
Música integra refugiados
A idéia de criar um coral, que reunisse jovens
refugiados para cantarem a paz, a alegria, a saudade de sua
terra e também seu sofrimento surgiu em 2002, no Sesc
Carmo, no centro de São Paulo. Denise Collus, assistente
social do Sesc, conta que a instituição já
mantinha uma parceria com a Cáritas de São Paulo
e oferecia aulas de português (ministradas por docentes
do Senac), refeições a baixo custo e acesso
gratuito à Internet. Mas desejava desenvolver uma outra
atividade, por meio da qual os refugiados pudessem falar sobre
sua cultura.
"Nós começamos a conversar com eles e
eles se empolgaram com essa história", lembra
Denise. Ela diz que a participação no coral
é voluntária e não tem por objetivo gerar
renda. "O Sesc não pode pagar cachê porque
eles não podem associar essa atividade à sua
sobrevivência. O coral seria uma forma de você
trabalhar e suportar esse período extremamente longo,
que é o processo de pesquisa que o Comitê Nacional
para os Refugiados (CONARE) faz para reconhecê-los como
refugiados".
Sobrevivência
Embora alguns dos integrantes do coral ainda acreditem
que possam conseguir algum dinheiro com a atividade, para
outros, como Patrick Kasonga, cantar permite estabelecer o
contato com outras pessoas. "Faz bem saber que há
gente que te escuta. Além disso, é interessante
trocar histórias com pessoas que têm o mesmo
problema que você. O refugiado sente muita nostalgia.
Quando chegamos, nós nos sentimos desamparados, perdidos
porque estamos em uma terra estrangeira. Depois, a gente tenta
sobreviver, continuar a mesma vida que a gente vivia na nossa
terra.
Não é fácil. Você vive a vida toda
na sua casa, com sua mulher e seus filhos e, de repente, encontra-se
em um quarto de albergue com 80 pessoas, num ambiente que
nem sempre é convivial, com pessoas que passam o dia
na rua, alcoólatras... Ficam em condições
pouco higiênicas, pessoas que cospem em tudo, que urinam
em todo lugar. Isso incomoda, mas o que você quer? O
Brasil já faz muito; é um país que acolhe,
que orienta, no limite de seus meios. Eu acho que a gente
não pode pedir muito às instituições
humanitárias. Acho importante dar condições
para o refugiado encontrar um trabalho. Mas eu acredito que,
como diz a canção, a gente pode viver no lugar
que estiver. O que precisa é de fé e esperança.
Sem fé e esperança, não há vida",
conclui.
O número de coralistas do grupo varia muito. Isso
porque os ensaios acontecem durante a semana, por volta das
cinco da tarde e, quando os coralistas arrumam um emprego,
não podem mais participar das atividades. São
os cantores que decidem seu repertório. Como são
apresentadas músicas em diversos dialetos, cada um
deve explicar o significado das melodias para o grupo. "O
coral é um espaço multiétnico e multicultural.
Se você não estiver disposto a participar, vai
embora. Mas se ficar, tem que respeitar a música do
outro, vai cantar a música do outro", explica
Denise.
Na opinião da assistente social, o Cantos da Paz
também ajuda a divulgar a questão do refugiado
para a sociedade, além de contribuir para mudar a imagem
que se tem do expatriado. "O Brasil desconhece a situação
do refugiado. Diferente dos países europeus, que as
pessoas têm claro que refúgio é dado a
uma pessoa que tem a sua vida ameaçada. No Brasil,
as pessoas associam o refugiado à criminalidade. A
imagem do coral é uma imagem que vai de encontro às
imagens que a gente vê diariamente na televisão.
Aquela imagem da fome, da violência, de pessoas extremamente
frágeis, é verdadeira. Mas existem pessoas que
mostram o contrário. São pessoas que vivem uma
situação muito difícil, esse desespero
para recuperar uma rotina que foi arrancada violentamente,
suportar a ausência da família, conseguir trabalho.
Mas a gente tenta mostrar um outro lado positivo. Apesar da
dificuldade, são pessoas de bem com a vida, alegres,
que estão dispostas a cantar e a mostrar um pouco da
sua cultura", analisa Denise.
LAURA GIANNECCHINI
do site setor3
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