Aos 18 anos
de existência, o Nós do Morro decidiu enfrentar
mais um desafio. Digno de alguém que atingiu a maioridade
– e, no seu caso, a maturidade artística também.
O bem-sucedido grupo cultural da Favela do Vidigal (Zona Sul
carioca) prepara duas adaptações para as telas
do espetáculo teatral infanto-juvenil Patunaíma,
encenado por jovens atores da comunidade no Teatro do Vidigal
e em praças públicas do Rio. No cinema, a história
será apresentada como ficção e documentário.
O embrião desta nova empreitada é resultado
das aulas de cinema do grupo, que reúnem 40 dos 300
jovens do grupo. O tema este ano é a relação
entre o teatro e a sétima arte. Os dois trabalhos terão
em média 15 minutos de duração e serão
filmados graças a uma parceria com a produtora Cavídeo.
A linguagem e o roteiro utilizados em cada um ainda estão
sendo discutidos entre alunos e professores, mas a idéia
é experimentar, fugir do convencional.
“No caso da ficção, não vamos
apenas filmar a peça. A idéia não é
só transpô-la do teatro para o cinema, vamos
misturar as duas linguagens”, diz Vinícius Reis,
34 anos, cineasta e um dos fundadores do núcleo de
cinema do grupo.
Na aula desta terça-feira, 6, a cineasta Carla Camuratti
falou aos jovens sobre sua experiência. Ela adaptou
para as telonas a ópera La Serva Padrona, de Gianbalista
Pergolesi, e fez um documentário sobre a peça
Irma Vap, um dos maiores sucessos do teatro brasileiro, com
Marco Nanini e Ney Latorraca no elenco. "O próximo
projeto dela é gravar uma ficção com
Irma Vap. Tem toda uma relação com o trabalho
que estamos desenvolvendo", conta Vinícius.
As gravações do Nós do Morro começarão
em duas semanas e o objetivo é estar com os vídeos
prontos até agosto. A versão em ficção
terá o mesmo elenco da peça, que traz a segunda
geração de jovens atores do Vidigal. Muitos
deles já conhecidos do grande público, como
Luiz Otávio Fernandes. Ele interpretou o personagem
Buscapé na infância no filme Cidade de Deus e
vive Macunaíma no espetáculo.
Preconceito em foco
Patunaíma fala de um encontro fictício
do anti-herói brasileiro Macunaíma, personagem
criado por Mário de Andrade, e do Patinho Feio, dos
contos de Hans Christian Andersen. A peça aborda temas
como estética e preconceito. Por serem muito feios,
os dois personagens são excluídos pelos seus
familiares e amigos. Mas dotados de forte personalidade, eles
partem para construir sua identidade própria enfrentando
a exclusão a que são submetidos por meio da
astúcia e da inteligência. Fred Pinheiro assina
a direção da peça e o texto é
de Luiz Paulo Corrêa e Castro – dois dos fundadores
do grupo de teatro do Vidigal em 1986.
“Todo ano escolhemos um tema e em 2003 trabalhamos
a exclusão social. Foi aí que surgiu a idéia
de unirmos os dois personagens em uma só peça”,
fala Fred.
Para as adaptações, os alunos se dividiram
em duas equipes. No curta, a imaginação fértil
de uma criança será o ponto de partida das mudanças
de linguagens. Logo no início do filme, um garoto vai
ao teatro assistir à peça, deixa-se levar pela
imaginação e também vive a história
na floresta. Ao final do espetáculo, ele se levanta
e vai embora do teatro. Luiz Henrique Rodrigues, de 24 anos,
que faz o personagem Paiamã, diz estar bastante curioso
para ver o resultado das idéias em prática.
"O que nós queremos mostrar é onde os códigos
que as peças propõem podem levar as pessoas",
diz Luiz.
Artur Sherman, de 18 anos, escolheu o grupo de documentário.
Junto com amigos, o garoto está desenvolvendo a idéia.
A intenção é aproveitar de alguma forma
as apresentações nas praças. “Vamos
entrevistar o público que viu a peça nestes
locais. Perguntar o que eles entendem por bonito e feio, e
sobre a importância da estética”, adianta
Artur. Os jovens chegaram à conclusão de que
fazer entrevistas é pouco. Eles querem mais: pretendem
contar a história do preconceito desde a época
da escravidão.
Artur entrou no grupo há quatro anos. A empolgação
com o teatro - ponto de partida do Nós do Morro - foi
ficando para trás na medida em que as aulas de cinema
começaram a envolvê-lo mais. Ele então
conversou com a direção da escola e pediu para
deixar os palcos. No grupo, quase todos os alunos de cinema
devem participar paralelamente das aulas de teatro, de literatura,
de artes plásticas e de voz. “Eles abriram uma
exceção para mim porque já não
sou mais iniciante”, conta.
Inserção no mercado
Criado em 1986, o Nós do Morro funcionava
apenas como grupo de teatro. Em 1994, os cineastas Vinícius
Reis e Rosane Svartman resolveram fazer um documentário
chamado Testemunho Nós do Morro, sobre o grupo e com
financiamento da Rioarte. Durante as gravações,
a dupla percebeu o interesse dos jovens pela parte técnica.
No ano seguinte, o vídeo foi lançado e em 96
nasceu o núcleo de cinema do Nós.
Hoje, os resultados são mais que positivos. O primeiro
curta produzido pelo grupo, O jeito brasileiro de ser português,
de Gustavo Melo, foi o vencedor do concurso da RioFilme em
2000. O roteiro do longa Abalou, desenvolvido por seis de
seus integrantes, ganhou, no mesmo ano, um prêmio do
Ministério da Cultura. Em 2002, o Nós recebeu
novamente o prêmio de Roteiro da RioFilme, desta vez
com Mina de fé, de Luciana Bezerra. “Os filmes
de Gustavo e Luciana foram passos importantes no nosso grupo.
Uma injeção de ânimo para alunos e professores”,
afirma Vinícius Reis.
Luiz Henrique, que está no Nós desde 1998,
vem acompanhando o desenvolvimento do núcleo de cinema
e acha que o caminho é ter o mesmo respaldo do grupo
teatral. A boa repercussão das produções
já estão proporcionando parcerias e captação
de recursos bem-sucedidas. "Estamos formando base, como
fizemos no teatro. Temos só que trabalhar e esperar
o reconhecimento merecido", acredita.
Da fundação do grupo até hoje, muitos
alunos já estão trabalhando como profissionais
e também como estagiários em produtoras de cinema.
“Como estagiários eles já ganham mais
do que os pais”, diz Vinícius. O salário
é de cerca de R$ 400.
Casarão abrigará cinema
Segundo Vinícius, que também trabalha
como jornalista no canal por assinatura Multishow, o estímulo
de trabalhar com jovens de comunidade de baixa renda vem do
envolvimento deles com o trabalho. “A falta de oportunidade
de fazer uma universidade faz com eles se dediquem bastante
às oportunidades que aparecem”, diz.
Desde o ano 2000, a sede do Nós fica em um casarão
de mil metros quadrados, no meio do Vidigal, comprado por
uma ONG holandesa à Prefeitura do Rio de Janeiro. No
lugar onde hoje é a garagem será construída
uma filial de cinema do Grupo Estação. O espaço
será programado e administrado pela rede. A administração,
produção de elenco e produção
de cinema funcionam no primeiro andar da sede, que ainda conta
com dois amplos salões, biblioteca, sala de vídeo,
ilha de edição e um terraço.
Já o Teatro do Vidigal fica nos fundos da escola municipal
Almirante Tamandaré e foi construído em 1995
com parte da verba do documentário Testemunho Nós
do Morro. “Os próprios integrantes do grupo fizeram
a construção, tijolo por tijolo”, diz
Vinícius. Uma reforma, com patrocínio da Petrobras,
aconteceu em 2001 e atualmente o espaço comporta um
público de 70 pessoas. A peça Patunaíma
fica em cartaz no mês de julho, aos sábados e
domingos, com sessões às 19h.
CARLOS COLLIER
do site Viva Favela
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