As dificuldades enfrentadas pelos
moradores de rua são bem familiares à freira
paulista Regina Maria Manoel, que já dedicou metade
de seus 54 anos à assistência social dessa população.
Aos 25 anos, ela era funcionária da Secretaria de Promoção
Social de Assis quando decidiu pedir exoneração
e se mudar para São Paulo em busca de um trabalho social
que estivesse integrado a uma mística religiosa. Na
capital, conheceu a Organização de Auxílio
Fraterno (OAF), entidade civil fundada em 1955 para dar assistência
a pessoas em situação de risco. Hoje, ela é
a coordenadora geral da OAF e membro do Fórum Nacional
de Estudos de População de Rua.
No começo deste mês, a irmã Regina participou
do 3o Festival Lixo e Cidadania, em Belo Horizonte, no qual
se discutiu a inclusão social de catadores e de moradores
de rua. Na ocasião, ela comentou o perfil dessa população
e o que deve ser feito para que ela deixe de ser marginalizada,
entre outros assuntos. O espancamento de 16 moradores de rua
na região central de São Paulo e a morte de
seis deles também foram lembrados.
Cidadania-e - Quantos moradores de rua existem hoje
no Brasil?
Regina Maria Manoel - Não temos um dado nacional.
Há só uma perspectiva de São Paulo. No
ano passado, a Fipe, ligada à USP, apurou que são
cerca de 10.500 pessoas na cidade. É muita gente. A
Fipe é credenciada para esse tipo de censo por ter
desenvolvido uma metodologia desde a primeira pesquisa, em
1992. Mas no Brasil não há um levantamento,
até porque não há política pública
para essa população. O censo não a computa
até por uma falha da metodologia para os que estão
circulando nas cidades. É um grande fenômeno
das grandes e médias cidades. Também não
podemos fazer uma projeção por São Paulo
porque ela não é parâmetro.
Cidadania-e - Não existe interesse em saber
quantos são os moradores de rua?
Regina Maria Manoel - Essa foi uma grande solicitação
que fizemos ao ministro Patrus Ananias ontem [dia 1o, na abertura
do Festival]. Pedimos que, se não for o IBGE, que pelo
menos algum outro órgão faça uma pesquisa.
Ele prometeu nos atender. O que também reivindicamos
é que o governo federal atenda a essa população
em seus diferentes segmentos.
Cidadania-e - Embora o governo não saiba o
tamanho desse problema, ele tem buscado enfrentá-lo?
Regina Maria Manoel - Da parte do governo federal,
a ação pode ser mais institucional, via prefeituras.
Mas, de maneira geral, não há comprometimento
nesse sentido. Até porque não se sabe quem é
essa população. Para ter uma política
pública, o primeiro passo é saber quem são
essas pessoas, em seus diferentes segmentos.
Cidadania-e - Qual é o perfil dos moradores
de rua nas grandes cidades do Brasil?
Regina Maria Manoel - Há uma visão meio
equivocada de que é bêbado ou desempregado ou
maluco. Mas existem outros grupos. Temos os egressos da prisão;
jovens egressos de instituições fechadas, sem
preparo para o mundo do trabalho; os idosos e as mulheres.
Nos últimos anos, temos visto crescer muito o número
de mulheres na rua.
Cidadania-e - O que explica isso?
Regina Maria Manoel - O empobrecimento da população
e uma desestruturação social. Quando há
mulheres, crianças e idosos na rua, é sinal
de uma chaga muito grande na sociedade. Esse fenômeno
aponta a incapacidade de gerenciar o próprio país.
Na rua, há uma gama muito extensa de moradores. Alguns
chegaram muito recentemente. Outros, já estão
integrados nesse universo. Em São Paulo, o fechamento
da construção civil gerou um boom muito grande
na rua. Muitos homens entre 30 e 50 anos ficaram sem casa
porque moravam no alojamento. Fechadas as obras, ficaram sem
ter onde viver. Não voltaram para casa até porque
saíram há muito tempo. Também já
conhecemos todo o processo migratório: essa questão
de não manter as pessoas no campo, permitindo o inchamento
das grandes cidades, o que passa pela falta de uma reforma
agrária e de uma reforma urbana.
Cidadania-e - Em seus 27 anos trabalhando com moradores
de rua, quais as mudanças que mais chamam a atenção?
Regina Maria Manoel - O aumento das mulheres, dos
idosos e de egressos da construção civil. Toda
essa luta antimanicomial também não foi amparada
em sua necessidade de serviços de assistência
para essas pessoas.
Cidadania-e - Como a senhora entrou na OAF?
Regina Maria Manoel - Entrei num período de mudanças
em que a OAF fechava a instituição e privilegiava
a convivência e a organização a partir
da rua. Íamos até a rua, debaixo do viaduto,
distribuir sopa feita com sobras da feira ou, aos domingos,
conversar sobre a vida, celebrar um pouco a fé. A partir
daí criamos grupos e depois trabalhamos com os catadores.
Reuníamos as pessoas da rua e buscávamos soluções
a partir do que elas vivem. Em 1980, desenvolvemos um centro
comunitário onde elas iam tomar banho, fazer programas
culturais, como teatro, discutir a vida, fazer documentação,
ocupar casas desocupadas. Em 1990, houve preocupação
do poder público em atender essa população
em São Paulo e foram criadas casas de convivência.
Nós colaboramos no projeto. O único albergue
até então era do estado e havia preconceito
até pela localização. Hoje, a OAF assessora
o movimento nacional de moradores de rua, participa do Fórum
de Estudos sobre População de Rua, articula-se
com a Pastoral de Rua de São Paulo, com o movimento
dos catadores do estado e da cidade. Discutimos a implementação
de uma metodologia de atenção à população
de rua, não só assistência, mas sentir
que as pessoas precisam encontrar um caminho para superar
essa situação.
Cidadania-e - Como é a interface da OAF com
o poder público?
Regina Maria Manoel - Sempre fizemos parcerias, seja com
o poder público, com o empresariado ou com a sociedade
civil. Temos cinco repúblicas em parceria com o governo
municipal. Nelas, as pessoas moram em pequenas casas onde
se organizam para o trabalho, para seu dia-a-dia.
MARIO GRANGEIA
da Fundação Banco do Brasil
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