Na tarde do último sábado
de agosto, depois de uma manhã de intenso tiroteio,
mais de 40 meninos passavam pelo alto do Laboriaux, na Rocinha,
zona sul carioca. Todos 'fortemente armados' com fuzis de
canos de PVC, pistolas de cabo de vassoura e até metralhadoras
de plástico com mira a laser. Mas essa tradicional
brincadeira de guerra, que inclui perigosos 'tecos' de milho,
pode estar com os dias contados. Diante da onda de destruição
de armas que tomou conta do país, alguns desses meninos
- com idades entre cinco e 11 anos - vão aderir ao
movimento. E entregar voluntariamente parte desse arsenal
no posto da campanha de desarmamento que será aberto
na sede da TV Roc (a TV comunitária da Rocinha), em
São Conrado, neste sábado, 11.
Entre o tal confronto “armado” - com que os meninos
reproduziam a realidade violenta com que são obrigados
a conviver - e a adesão à campanha pacifista,
houve uma conversa com o presidente da Associação
de Moradores do Laboriaux.
"Rendi três meninos do grupo e fiz um discurso
antiarmamentista, convencendo-os a me entregarem as armas.
Quinze minutos depois eu estava com 18 daquelas pistolas na
mão e a promessa de que todas as outras existentes
na comunidade me serão entregues até 12 de outubro,
Dia das Crianças”, conta Carlos Costa, também
coordenador da área de Segurança Pública
e Direitos Humanos do Viva Rio.
Tudo 'na moral'
Se no Rio de Janeiro, só em agosto, mais de
seis mil armas já foram entregues aos postos da campanha
oficial de desarmamento por cariocas preocupados em tornar
a cidade menos violenta - cerca de mil somente no posto do
Viva Rio -, na Rocinha, o espírito pacifista não
está sendo muito diferente. Dias mais tarde, Costa
continuava recebendo Bob Teco - que é como se chamam
essas armas artesanais. Já tem mais de 20 recolhidos
na sede da associação de moradores.
Boa parte delas entregues pelo empenho de Everson Silva Andrade
Mendes, um garoto esperto de 11 anos que mora na área
conhecida como Mata, no alto da Rocinha. Sensibilizado com
o discurso de Costa, ele e os amigos mais chegados, Jorge
Luís dos Santos, 15, e Wesley Oliveira da Silva, 10,
passaram a tentar convencer companheiros e adversários
de brincadeira a um armistício. Segundo afirmam os
três, tudo é feito “na moral”, apenas
no papo.
Como qualquer cidadão preocupado com o risco que as
armas representam, os meninos passaram também a pesar
o perigo que mesmo aquelas pistolas de mentirinha podem significar.
“Já vi garoto ficar com um teco de milho preso
na perna. Ele teve que puxar e sangrou muito. Até eu
já levei um teco no canto do olho. Dói muito.
E, se pegar, pode até cegar”, admite Everson.
Ele confessa que o tiro tão perto do olho também
contribuiu para fazer com que mudasse de brincadeira. E a
experiência agora é usada como argumento para
convencer os mais relutantes a entregar o arsenal.
“Chego para eles e pergunto se é preciso esperar
acontecer alguma coisa mais séria com um menino para
parar com isso”, diz Everson, desenvolto. Nem sempre
a conversa é vista como séria e os garotos de
grupos adversários costumam revistá-los para
ter certeza de que eles não estão apenas tomando
as armas de graça. Quando todos os argumentos falham,
Everson não tem dúvidas. Procura as mães
para uma conversa. O que tem dado ainda mais certo. “Geralmente,
os pais não gostam dessa brincadeira e tomam os Bob
Tecos”, diz.
De jaqueta e touca
No que depender de Everson e sua turma, agora inteiramente
adeptos do desarmamento, as armas da Mata permanecem banidas.
“Agora só tem Bob Teco da área do Flip
pra baixo”, garantem. E eles sabem muito bem o destino
que querem para todo esse armamento. “Acho que tudo
deve ser demolido, e os pedaços que sobrarem devem
ir pro lixo”, fala Everson, com a concordância
dos amigos. Em vez dos conflitos "armados", a rivalidade
com os garotos da Vila passou a ser resolvida nos campos de
futebol da comunidade. Com o incentivo de Carlos Costa.
Tudo isso tem trazido sossego a Rosineide Silva Andrade,
37 anos, mãe de Everson e de mais seis outros filhos.
Ela agora vê deixadas em paz suas latas de feijão
e os canos de PVC com que o marido está ampliando as
instalações de água da casa.
“Graças a Deus, eles pararam com isso. O Carlinhos
da associação nem sabe, mas interrompeu uma
guerra entra os garotos aqui da Mata e os da Vila. Era uma
perturbação esses meninos correndo por todo
canto, de noite, de jaqueta e touca, gritando e repetindo
toda aquela gíria que eles ouvem por aí. Chegava
a ser apavorante”, lembra sem saudade.
A preocupação de Dona Rosineide e de outras
mães era enorme. Além do risco dos filhos saírem
feridos por caroços de milho e feijão, projetados
com toda pressão por pedaços de borracha, ver
também como a brincadeira reproduzia em minúcias
o comportamento dos homens do tráfico parecia, no mínimo,
inquietador. “Eu tinha medo. Eles pareciam mesmo uns
bandidinhos e tudo aquilo era como um incentivo. Num dia,
eles estão atirando com Bob Teco; no outro, quem sabe
não estariam com armas de verdade?”, teme.
A guerra entre Vila e Mata
Mãe de dois meninos, Dona Josefa Cecília
Lima, a quem todos chamam Raminha, também é
testemunha de que as coisas ali na área da Mata mudaram.
Os Bob Tecos foram todos aposentados - ela espera que definitivamente.
“Meus filhos eram doidos por isso. Mas não chegaram
a fazer nenhuma arma porque quando meu marido viu um deles
cortando cano, tomou tudo e deu a maior bronca”, conta.
Ela atesta ainda os esforços da turma de Everson, Wesley
e cia. no desarmamento dos demais. “Eles são
bons meninos. E agora isso aqui anda calmo”, diz.
Se nas últimas semanas reina a calma, a situação
já foi bem diferente. Embora para os garotos tudo não
passe de uma grande brincadeira, a guerra entre as turmas
da Mata e da Vila, ou entre os vários grupos de outros
cantos da Rocinha, imita os confrontos entre os bandos do
tráfico. A idéia é invadir o território
dos adversários, tomar-lhes as armas. A rixa também
transformava a passagem por certas áreas da comunidade
– como na ida ou volta para a escola -, em risco de
levar saraivadas de tecos.
“Às vezes, a gente conseguia fazer um refém
e fazia ele nos dizer onde ficava escondido o armamento deles
e pegava tudo”, conta Wesley. Ele e Jorge também
falam de episódios em que os garotos surpreendidos
pelos grupos adversários eram amarrados, obrigados
a tirar a camisa e alvejados com muitos tecos. A maior parte
dos confrontos aconteciam à noite, como provam as lâmpadas
de vários postes da Mata, quebradas pelos disparos.
“A gente se reunia numa laje daqui, para atirar nos
outros”, confirma Jorge.
Réplicas quase perfeitas
Como todo o armamento é produzido artesanalmente,
o próprio Everson e sua turma admitem que procuravam
imitar o mais fielmente possível as armas que viam.
As duas que Everson entregou ao presidente da associação
de moradores, por exemplo, eram uma “12”, de quatro
canos, que permitia disparar mais rapidamente caroços
de feijão nos “alemão” da Vila,
área da favela um pouco abaixo da Mata, com quem os
garotos disputavam territórios no Bob Teco. A outra
era uma pistola. Ambas de canos de PVC, envoltos em fita isolante
preta, para ficarem o mais reais possível.
Tudo isso só fazia crescer a preocupação
das mães. “Imagine um policial, ou alguém
armado, vendo o vulto desses meninos surgir de repente com
um cano na mão? No escuro, quem ia pensar que era brinquedo?”,
temia Dona Josineide.
Nesse ponto, a inventiva dos meninos não tinha limites.
Dois ou mais canos, formatos que mais se aproximassem de fuzis,
pistolas, metralhadoras, tudo eles inventavam. Valia até
incorporar à arma uma daquelas canetinhas a laser,
o que permitiria disparar com maior precisão os projéteis
no escuro.
Para facilitar a recarga das armas, Everson chegou a criar
uma novidade. Um furo feito com faca aquecida sobre o PVC
possibilitava encher-lhe o cano com caroços, devidamente
acondicionados na boca, sem tirar a arma da posição
de tiro. Como se estivesse tocando flauta.
Arsenal lucrativo
Wesley, Everson e Jorge chegaram a se tornar prósperos
negociantes do arsenal que produziam. “Vendemos mais
de 50 armas, cada uma a R$ 1, R$ 0,50. A gente chegou a ganhar
R$ 25. Tiramos R$ 5 para comprar mais bolas de encher - são
elas que, esticadas, disparam os projéteis –
e dividimos o resto”, contam Jorge e Wesley.
Para o presidente da associação de moradores,
Carlos Costa, tudo isso impressiona. "Acho que talvez
este espírito aventureiro de fabricar e guerrear com
armas de PVC seja bem pior do que o volume de armas de verdade
em poder do tráfico. E essa é uma realidade
na maioria absoluta das favelas. Tem até fogueteiros
mirins, crianças ainda menores, que “soltam”
foguetes de pedaços de cabos de vassoura”, preocupa-se.
Como alternativa, ele agilizou a implantação
dos projetos esportivos de futebol e vôlei na área,
que já contam com a participação de cerca
de 160 meninos.
“Queremos discutir com eles o destino que deve ser
dado às armas que continuam recolhendo. E mostrar a
eles a importância de tudo o que estão fazendo”,
fala Costa. Em seus planos, a idéia é ocupar
a garotada também com programas de artes e educação
ambiental. Antes disso, em conjunto com o coronel Jorge Braga,
comandante do 23º Batalhão, estão sendo
planejados passeios com os meninos por pontos turísticos
da cidade. “O coronel já nos ofereceu transporte,
a infra-estrutura do batalhão. Só falta marcar
a data”, diz. Será uma forma de estimular a nova
brincadeira, a do desarmamento.
VILMA HOMERO
do site Viva Favela
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