Na favela de Parada Angélica,
em Vila Iraci (Duque de Caxias, na Baixada Fluminense), as
crianças já sabem exatamente o valor da preservação
ambiental. Ali, cair na piscina, soltar pipa, jogar totó
e sinuca são atividades pagas com uma moeda diferente:
unidades de garrafas PET. No clube local, cada diversão
tem um custo específico, que os meninos já sabem
de cor. A idéia saiu da cabeça do bombeiro-hidráulico
Valmir do Amor Divino Santana, de 37 anos, morador que vem
realizando pequenos milagres na comunidade. Como criar uma
biblioteca, implantada no único espaço disponível
– um conteiner.
O espaço que foi destinado aos livros deveria servir
às ações de educação ambiental
do Programa de Despoluição da Baía de
Guanabara (PDBG), mas estava abandonado. "As crianças
e os jovens viviam me pedindo lápis, caderno, dinheiro
para bala ou para sair. Eu ficava triste porque não
tinha como ajudar. Até que veio a idéia de montar
um projeto social, ambiental e econômico, a partir da
reciclagem", explica o baiano Valmir.
“Para entrar na piscina as meninas têm que dar
cinco garrafas e os meninos dez. Elas precisam juntar menos
porque não podem ir longe para pegar as garrafas",
explica Iago de Oliveira, 12 anos, que completa: "Para
jogar totó precisamos de três garrafas e para
comprar picolé, sete. A gente vem aqui todo dia, principalmente
nos sábados de sol", diz ele, sendo apoiado por
um grupo de umas sete crianças.
Para Valmir, usar as garrafas como moeda atinge vários
objetivos: ajuda a arrecadar matéria-prima para o projeto,
estimula as crianças a participar e ainda oferece uma
alternativa de lazer. "Aqui não tem praia ou cachoeira
por perto e a passagem para a diversão é cara.
Se cada criança ou jovem conseguisse R$ 10 por semana,
já seria o suficiente para afastar muita gente do caminho
errado. Com esse mínimo a galera fica feliz",
diz ele, que planeja fazer no local um campo futebol.
Incluir as crianças no projeto foi possível
graças ao servidor público Antônio Nicolau,
amigo de Valmir, que foi convencido a transformar seu terreno
numa espécie de clube para as crianças usando
o Pet como moeda de troca.
Nada capitalista
O projeto de Valmir se estrutura da seguinte forma:
na varanda de casa, em Vila Araci, acontecem as oficinas de
artesanato que usam garrafas Pet como matéria-prima.
Os jovens aprendem a fazer vassouras, porta-retratos, caixinhas,
móveis e diversos utensílios de plástico.
Em outro terreno, no bairro Imbariê, três pessoas
trabalham na prensagem de garrafas que serão vendidas
ou usadas no artesanato. O material coletado vem de doações,
é comprado de catadores da própria comunidade
ou chega como a tal moeda de troca das atividades de lazer
e esportivas das crianças.
"Indiretamente, o projeto envolve toda a comunidade.
As crianças, por exemplo, doam garrafas para participar
de torneios de futebol e de outras iniciativas", diz
o baiano. Ele preferiu assumir a coordenação
das atividades de artesanato – que considera "a
parte social" do projeto. É com a venda do material
prensado, porém, que eles custeiam grande parte das
ações.
“Percebi que esse lado mais capitalista não
era comigo porque eu tenho o coração mole, quero
ajudar todo mundo e então tava dando prejuízo",
conta, sorrindo. Para colocar seus objetivos em prática,
Valmir mobilizou um grupo de amigos. Eles hoje apostam na
reciclagem para ampliar os horizontes de 12 jovens.
Biblioteca 24 horas
Do trabalho de reciclagem para a invenção
de uma biblioteca foi um pulo. "O terreno da biblioteca
era para funcionar como uma espécie de sede do trabalho
de educação ambiental do Programa de Despoluição
da Baía de Guanabara. Lá tinha dois conteiners:
um ia virar um escritório e o outro era para ser um
banheiro. No lugar ia ter trator, máquina compactadora,
caminhão. Mas como de 1998 até 2000 a idéia
não foi adiante, utilizamos o espaço, com o
consentimento da prefeitura, para fazer a biblioteca",
diz Valmir.
Meio ambiente e educação tem tudo a ver para
o grupo de Valmir, que conta com o montador Marco Antônio
Onório, 38 anos, o Marcão, o motorista rodoviário
Roberto Correia, 42, o comerciante Jaime Oliveira Moraes,
28 anos, e o vigia Murilo Filho, 30. "Isso tudo faz parte
de um único esforço para desenvolver a comunidade.
A gente sabe que mudar totalmente é difícil,
mas dá para melhorar", observa Marcão.
Valmir ressalta que a biblioteca serve de incentivo para os
jovens que trabalham em seu projeto de reciclagem.
"Uma das minhas exigências é que os participantes
estudem, então eles encontram inspiração
na biblioteca. O índice de pessoas passando de ano
está melhorando muito aqui na comunidade. Em quatro
anos, se Deus quiser, está todo mundo na faculdade",
aposta.
Primeiro livro veio do lixo
De acordo com os amigos, a biblioteca conta com cerca
de 3 mil livros – didáticos, de ficção,
revistas - em sua maioria, doados por pessoas da própria
comunidade. “A primeira pessoa que fez a doação
era analfabeta, trabalhava como catadora e achou no lixo uma
caixa com uns 50, tinha até uma Bíblia. Isso
serviu de incentivo para a gente continuar”, conta Valmir.
A iniciativa faz o bombeiro perder horas de sono. “Quando
não estamos aqui no conteiner, os garotos vão
na porta da nossa casa pedir pra gente abrir. Legal, né?
Biblioteca 24 horas", diz ele, entre irônico e
animado. O projeto de Valmir e de seus amigos ganha cada vez
mais novos adeptos.
Uma das mais recentes integrantes é a artista plástica
Cristina Silva, 36 anos. Moradora de Nova Iguaçu (Baixada
Fluminense), duas vezes por semana ela toma o rumo de Parada
Angélica para repassar aos jovens o que sabe sobre
artesanato com Pet. “Temos que juntar esforços”,
afirma.
TV ensinou a reciclar
A idéia de trabalhar com reaproveitamento
de garrafas Pet surgiu há cerca de três anos,
quando Valmir assistia a um programa na televisão.
“Vi uma pessoa ensinando como se fazia vassoura com
garrafa Pet. Nem deu pra pegar direito, tentei várias
vezes e fui aperfeiçoando com a ajuda dos amigos”,
conta. No princípio, os jovens ganhavam R$ 10 para
cinco meses de trabalho. Hoje sua renda mensal chega a R$
150. Já o pessoal que trabalha na prensagem tira R$
300 por mês.
O projeto conta com apoio da Recicloteca – Centro de
Informações sobre Reciclagem e Meio Ambiente,
que através do Programa Reciclagem Solidária
fez a doação de duas prensas e oferece seu espaço,
em Laranjeiras (Zona Sul do Rio), para a venda das peças
de artesanato. Elas também são vendidas em eventos
e por meio de encomendas.
“Agora, por exemplo, vamos fazer móveis para
uma vídeo-locadora e precisaremos ampliar o grupo”,
calcula Valmir. Para viabilizar o projeto, o bombeiro se uniu
a ONG Casa da Juventude e montou o que ele chama de um ‘núcleo
independente’. Assim, tornou-se o diretor-executivo
do núcleo Parada Angélica da ONG.
Projeto João de Barro
Valmir ressalta que seu projeto conta com apoio do
artista plástico Deneir Martins, que coordena o Projeto
João de Barro, no Ciep Nação Yanomami.
“O projeto oferece para as crianças oficinas
gratuitas de artesanato em barro. Trabalhamos sempre em parceria”.
No artesanato com Pet, enquanto as meninas trabalham nos
adereços – arranjo de flores, porta-cartão
– os meninos confeccionam os móveis. "Eles
ficam com a parte bruta", brinca o baiano. Os preços
dos produtos variam de R$ 5 – uma vassoura - a R$ 250
- um sofá de dois lugares. Sua experiência anterior
como presidente da Associação de Moradores de
Parada Angélica foi importante para levar adiante o
projeto.
“Na Associação a gente tinha que fazer
um pouco de tudo. Fui até nas rádios comunitárias
pedir pelo saneamento. Hoje eu sei que precisamos ter iniciativa,
porque não vem projeto social pra cá. Quando
vem, não leva em conta o que já estamos fazendo.
Por isso, vamos começar a politizar as pessoas para
que saibam dos seus direitos", afirma.
Ele nega, porém, sua liderança no grupo de
benfeitores de Parada Angélica: “Aqui todo mundo
faz de tudo. Só que no grupo são todos bichos
do mato, então só eu que falo”, explica,
modestamente.
As informações são
do site EcoPop.
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