Imagine instrumentos musicais feitos
com chapinhas de refrigerante, canos de PVC, caixinhas de
doce, troncos de árvore e velhas campainhas de telefone.
No projeto Reciclagem, Misancene e Música, na comunidade
Mangueiral, em Realengo (Zona Oeste do Rio) é assim:
não há peça de lixo que deva ser desprezada.
O que muitos jogam fora pode servir de inspiração
e gerar novos músicos, que se aventuram por ritmos
como maracatu, samba, funk e MPB. O padrinho, é claro,
é o bruxo Hermeto Paschoal.
“Quando cheguei não sabia tocar nenhum instrumento,
mas tinha vontade de aprender. Hoje sei tocar um pouco de
tudo”, diz Marlon Maike, 11 anos, um dos 22 integrantes
das oficinas, que acontecem na sede da Associação
de Moradores da Carumbé (AMOCAR), parceira do projeto.
Das aulas, que acontecem duas vezes por semana, com oficinas
de prática de conjunto e de construção
de instrumentos, participam adultos, jovens e crianças
da comunidade.
Mola de fogão vira reco-reco
A organização do projeto está
nas mãos de quatro amigos. Eles resolveram que era
preciso fazer alguma coisa pelo cenário sócio-cultural
e pelo meio ambiente em Mangueiral. À frente da coordenação
está o músico Marcelo Gularte, que retornou
à comunidade após a perda de um irmão,
vítima da violência.
"Fui criado no Mangueiral, depois morei na Zona Sul
e, há cerca de dois anos, voltei pra cá, onde
meu irmão viveu. Percebi que tinha que fazer alguma
coisa para dar perspectiva aos jovens”, conta.
Entre os instrumentos que os alunos aprendem a confeccionar
estão chocalhos feitos de coco, reco-reco de bambu,
pau de chuva de cano de PVC, além de outros instrumentos
de percussão. Entre eles, uma velha campainha de telefone
e baquetas fabricadas a partir de galho de árvore e
pedaço de borracha.
Nada é desperdiçado. Com a tampa do filtro de
ar de um carro e uma mola de porta de fogão, por exemplo,
foi feito um reco-reco batizado de trovão. "A
sonoridade é estridente, parece uma guitarra distorcida",
observa o professor de construção de instrumentos
Carlos Henrique Gomes da Silva, 30 anos, o Cacá.
A matéria-prima é retirada do lixo. "A
idéia é incentivar a coleta seletiva. Nós
costumamos reunir um grupo, coletamos e trazemos os reciclados
para a sede do projeto. Os participantes nos ajudam a escolher
o que será utilizado", diz o coordenador e músico
Marcelo Gularte. Durante as aulas, os participantes adquirem
conhecimentos sobre cultura, história e educação
ambiental.
Reciclar pessoas
As oficinas também dão espaço
para a criatividade e a experimentação. "Nós,
que trabalhamos com instrumentos artesanais, somos parecidos
com os cientistas - estamos sempre pesquisando novas fórmulas”,
diz Fábio Santos, de 29 anos, mostrando uma harpa africana
que costumava ser tocada quando o chefe de uma tribo morria.
“Mas ela era feita com outros materiais”, observa.
No Rio, o marfim foi substituído por braços
de árvore de goiabeira e os pinos de afinação
de madeira foram trocados por pinos de mesa de sinuca. “Enfim,
tudo foi adaptado para as nossas possibilidades”, diz
Fábio, um dos colaboradores do projeto.
O presidente da Associação de Moradores, Cláudio
Peixe, 35 anos, conta que recentemente os moradores de Mangueiral
passaram a guardar material reciclável para doar para
as oficinas. "Tem menos lixo sendo jogado nos rios da
comunidade", diz.
"As crianças ficam abismadas quando descobrem
que é possível tirar som de um coco ou de um
cano. O projeto fortalece a vontade de aprender", afirma.
Cláudio sorri ao falar sobre os organizadores do projeto.
"O mais engraçado é que somos amigos de
infância. Éramos todos umas pestes, a gente brincava
com tudo o que encontrava pela frente. Hoje eu sou presidente
da associação, eles coordenam o projeto e tudo
é feito na maior seriedade", afirma Cláudio.
Segundo o coordenador do Reciclagem, Misancene e Música,
Marcelo Gularte, projeto surgiu diante da falta de recursos
para a compra de instrumentos musicais aliada à preocupação
com a preservação ambiental.
"Era preciso promover uma virada produtiva no cenário
cultural de Zona Oeste, que estava estagnado. Os jovens queriam
tocar, queriam participar, mas não tinham espaço
nem dinheiro. Ao mesmo tempo, eu via um monte de lixo sendo
depositado no rio, nas ruas, e isso me incomodava", diz.
Marcelo usa o conceito ambiental de forma bem ampla: "Quando
falamos em reciclagem não estamos falando apenas do
lixo, mas também de reciclar as pessoas, que se encontram
sem auto-estima, sem perspectiva de vida, na posição
de objetos. Temos o objetivo de mudar essa cena social através
da música", assinala. Para colocar o projeto em
prática, foi fundamental o engajamento de Cacá,
morador de Mangueiral.
"Por falta de recursos, sempre fui um músico
auto-didata. Queria aprender a tocar instrumentos, mas não
tinha dinheiro para comprá-los. Então comecei
a pesquisar outros timbres sonoros, a buscar maneiras de fazer
eu mesmo os instrumentos, com peças que ia encontrando
por aqui", diz o músico.
Cacá já andava pesquisando ritmos brasileiros
quando mergulhou de cabeça na idéia de reunir
músicos da comunidade que, como ele, fossem auto-didatas.
O embrião do Reciclagem Misancene e Música foi
o Código de Barra, projeto que promovia apresentações
ao ar livre com alguns instrumentos de material reciclado.
"O nome era uma referência aos músicos que
eram barrados nos grandes eventos porque não tinham
dinheiro, daí a palavra barra", explica.
O grupo - que reunia cerca de dez pessoas - pesquisava novas
sonoridades e trabalhava em apresentações que
misturavam artes cênicas e música. Os espetáculos
aconteciam em espaços alternativos, como do lado de
fora das lonas culturais. As pessoas que passavam podiam olhar
a apresentação e tocar os instrumentos.
Força de Hermeto
A partir do Código de Barra, a pesquisa de
novos ritmos se enriqueceu até virar o projeto atual.
"A idéia foi tomando corpo, as crianças
e os adolescentes foram se interessando", lembra o coordenador
Marcelo. Ele conta que o pontapé inicial foi o primeiro
lugar no concurso Ação Durban, voltado para
o estímulo a práticas sócio-culturais.
O empurrãozinho final veio com uma carta de referência
dada por ninguém menos que Hermeto Pascoal, que morava
na Zona Oeste. "Ele fazia ensaios abertos em casa e já
conhecia o nosso trabalho de pesquisa musical. Ao dar essa
ajuda, acabou virando uma espécie de padrinho do projeto",
lembra o coordenador Marcelo.
Com o primeiro lugar no concurso, o Reciclagem Misancene
e Música teve financiamento durante cinco meses. "Agora
estamos em busca de novos patrocínios", diz. Apesar
de reconhecer que é dura a estrada para os músicos,
o grupo conta com orgulho que a fabricação de
instrumentos musicais só tem ganhado força nos
últimos anos.
Prova disso é o trabalho realizado pelo artesão
e contrabaixista Alexandre Braga, 30 anos. Nas mãos
do músico, os instrumentos ganham sofisticação.
Um cano de PVC se acopla ao miolo de uma velha flauta doce
e a uma cabaça para dar origem ao ‘clarinete-cano’.
Existe, ainda, uma variação desta fórmula,
feita com um joelho do cano de PVC – o ‘sax-cano’.
“A sonoridade é única", diz o contrabaixista,
que dá aulas particulares de fabricação
e prática de instrumentos em Realengo e São
Gonçalo (região metropolitana do Rio). Alexandre
sonha colocar em prática seu próprio projeto
em uma comunidade de Realengo, bairro da Zona Oeste, onde
mora: "Acho importante que esse tipo de oficina atinja
outras comunidades". Alguém duvida?
As infomações são
do site EcoPop.
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