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Casa própria, reconhecimento
profissional, apoio familiar, amigos e dinheiro no bolso.
Esse pode parecer o sonho de vida da maior parte das pessoas.
Imagine então largar tudo isso para viver entre os
excluídos da sociedade, tendo como meta, apenas se
dedicar à solidariedade e à caridade para o
bem do próximo? Pode até parecer algo distante
da realidade, em que as pessoas pensam mais em "ter do
que ser", mas foi essa vida que o artista plástico
Edson Luiz Medeiros, 44 anos, formado pela Faculdade de Belas
Artes e vencedor de diversos prêmios na área,
escolheu para si.
Quem quiser encontrá-lo, ou
quem sabe até comprar um belo quadro do artista, não
deve ir até o seu ateliê, na Vila Medeiros, bairro
de classe média da zona Norte de São Paulo,
onde nasceu e vive sua família. O endereço certo
é outro bem diferente: calçada da rua Freire
da Silva, no baixo Cambuci, Centro da cidade, um local deserto
e muito escuro à noite. É neste espaço,
entre um armário improvisado coberto com saco de lixo,
colchonetes, cadeiras, espelho pregado na árvore e,
é claro, muitas pinturas penduradas nos muros - tudo
coberto com uma grande lona - é que ele passa dias
e noites durante a semana com os carroceiros da cidade.
Essa grande transformação
no seu dia-a-dia começou em 2003, quando o artista,
que só conhecia o bairro quando passava de carro nas
proximidades, decidiu olhar com mais cuidado para aquela realidade.
"Quando eu comecei a caminhar a pé pelas ruas
via, a cada 100 metros, um homem deitado no chão, como
um saco de lixo. Foi aí que falei: 'Aqui é o
meu lugar'. Eu queria saber a situação que eles
passavam. Comecei a fazer amizade para saber como sobreviviam
e fiz um pequeno levantamento. Descobri que aqui há
72% de áreas invadidas, prostituição
infantil, muitas drogas e alcoólatras, e que a população
é predominantemente de negros e nordestinos",
se recorda.
Foi assim que Edson decidiu se tornar
um deles, ou seja, se vestir, comer, trabalhar e viver entre
eles para ganhar a confiança daquelas pessoas. "Eles
têm que me ver assim para confiar em mim. Se eu viesse
de terno e gravata, iriam achar que eu era advogado. Se eu
estivesse de branco, seria médico. Preciso estar assim.
É o exemplo mesmo. Mostrar de que é viável
mudar de vida". No início, Edson conta que a tarefa
não foi fácil, pois teve de enfrentar frio,
fome e medo, uma vida que não conhecia. "Nunca
pensei que iria deitar em plena avenida Lins de Vasconcelos
[uma das ruas principais da região], tranqüilo
e sossegado, sem qualquer um para me censurar. Ninguém
olha pra você vestido assim".
Por isso, o artista procura mostrar
aos carroceiros que passam por ali a importância de
cuidar de si, até com as coisas básicas, como
fazer a barba, cortar o cabelo e um simples banho. Edson faz
tudo isso ali mesmo. Aprendeu até mesmo a cortar cabelo
para poder ajudar os amigos. A caixa de primeiros socorros
fica sempre por perto caso alguém precise. O artista
providencia ainda roupas, sapatos e alimentos, com o apoio
do Corpo de Bombeiros e das doações das pessoas
que passam pela região. Quando eles não conseguem
um local para tomar banho, já que o ferro velho da
região não permite mais a entrada deles, entra
em cena uma banheirinha de neném mesmo.
"É mais um trabalho
de edificação deles. Eu dou valor para eles.
Mostro como devem se comportar na sociedade. Quando eu vou
conversar com os carroceiros me sinto como um soldado, que
vai buscar lá onde ele está perdido. Coloco
nas costas mesmo. O grande problema que eles enfrentam é
a bebida. Estão sempre machucados internamente. Estão
abandonados", conta.
Edson procura ainda orientar os carroceiros,
principalmente quanto à venda dos materiais que eles
recolhem na rua. Segundo o artista, o lixo da cidade é
muito rico e eles encontram muitas peças, como máquinas
de escrever antigas, livros, que poderiam ser vendidas para
colecionadores e não para o ferro velho. Até
capacete da Segunda Guerra Mundial com a marca de um tiro
de raspão foi encontrado pelos carroceiros e Edson
levou para um museu. O material, como papel, papelão
e plástico é separado para ser reciclado. "Se
eu conseguir fazer com que eles fiquem aqui realizando esse
trabalho três, quatro horas é o tempo que eles
não estão bebendo. E isso é muito bom",
destaca Edson.
Já madeiras ou molduras de
quadros recolhidos por eles, o artista compra para poder reciclar
e fazer seus quadros. A calçada se torna ainda não
somente o ateliê de Edson, mas uma sala de aula onde
ele ensina desenho e pintura aos carroceiros. Não tem
horário e nem dia marcado. Quando eles chegam, Edson
pára o que estiver fazendo para as aulas. O artista
trabalha, principalmente, com estampas para que eles possam
colorir por cima e ter uma noção do desenho
aos poucos, apesar dos novos alunos quererem saber de tudo
logo no início.
Edson conta que procura ensinar logo
os segredos desta arte, como a técnica de como colocar
o pincel corretamente na tela, coisas que ele demorou anos
para aprender. Ele afirma que, na verdade, os quadros são
grandes chamarizes para que as pessoas possam ajudar também
o trabalho que ele desenvolve. O artista vende as obras por
preços de produção, cerca de R$30,00,
e solicita alguma doação do comprador.
Os quadros produzidos pelos carroceiros
também são vendidos no local, numa constante
"mini-exposição". Pelos desenhos apresentados
- muita paisagem, principalmente - é possível
já perceber o gosto do artista. "Eu não
gosto de abstracionismo porque é uma pintura interior
do artista. Enquanto a paisagem, o mar, o auto-retrato, é
diferente. Isso mostra a realidade. E a pintura é uma
brincadeira. A vida é muito séria e com a pintura
você pode errar. Você tem que se sentir bem",
ressalta.
E é assim que Dona Maria,
64 anos, se sente ao pintar os quadros com a ajuda de Edson.
"Eu tenho ´tapiado´ na verdade", se
diverte, ressaltando que prefere pintar paisagens, mares e
florestas. "O quadro significa alguma coisa que sai da
cabeça da gente. E esses lugares fazem me lembrar muita
coisa. Eu não gosto de cidade não. Gosto é
de mato, rio", explica. A senhora, que é costureira
profissional, se tornou carroceira há um ano para ajudar
no orçamento da família enquanto não
tem condições de concertar a sua máquina
de costura. Ela conta que não pode gastar nada, pois
quer comprar a sua moradia própria. Sorridente e com
muita energia, Maria afirma que tem "muitos jovens por
aí que não têm a sua disposição
e força". Prova disso é que ela voltou
a estudar - está na 6ª série do Ensino
Fundamental - e faz aulas de informática. Além
disso, ela ainda arranja um tempinho para fazer aulas reforço
com Edson. "A gente precisa aprender. Quanto mais saber,
melhor!".
Preconceito da sociedade
Mas, apesar do colorido constante dos quadros que contagia
quem passa por esta calçada, as dificuldades também
estão sempre presentes. À noite, eles se reúnem,
cerca de 14 carroceiros, e dormem juntos no local. Edson conta
que muitos vêm de longe em busca de segurança
e porque sabem que ali não tem bagunça. O artista
plástico, no entanto, raramente dorme, pois a cada
hora chega mais um precisando de alguma ajuda.
Apesar das doações
de alimentos, a comida também às vezes falta.
Edson explica que nunca traz coisas da sua casa para o espaço,
pois todos se mantêm somente com o trabalho que realizam.
"Eu tenho que provar que é viável isso.
Você ganha um pouco hoje, um pouco amanhã e não
pode gastar tudo em cigarro, cachaça. Eles têm
que aprender a guardar. Falo para eles que existe uma porta
e ela vai se abrir", afirma. Edson acredita ainda que
conta com uma proteção divina, pois sempre nos
momentos difíceis, aparece uma ajuda.
"Outro dia eu levantei
e disse: 'Estou com fome, Senhor!'. Logo em seguida um senhor
de uma igreja buzinou o carro dizendo: ´Olha o lanche´.
Falo que aqui tem anjos com espadas de ouro", se emociona.
O desprezo da sociedade para com estas pessoas também
torna todo o trabalho de Edson mais difícil. Ele acredita
que os carroceiros são vistos como maloqueiros e são
repudiados pela sociedade. "Se existe trânsito
na rua, por exemplo, e tem uma carroça lá na
frente, a culpa sempre é dela porque está atrapalhando.
O carroceiro cata lixo e é considerado lixo. A sociedade
quer que ele saia do centro, removendo como se fosse um saco
de lixo", destaca o artista.
Prova disso foi uma experiência
pela qual o grupo passou recentemente. Na rua havia muitos
cachorros. Uma senhora passou pelo local com um carro importado
e ofereceu alimento para eles, mas era ração
para cachorro. "Eu falei: ´A gente dá as
sobras das nossas comidas para os cachorros. Agora, se a senhora
passou aqui e viu os cachorros, dá uma olhadinha melhor
que a senhora vai ver homens, crianças e mulheres com
frio, fome e medo. Existem seres humanos aqui. Apesar da sua
boa intenção, quero comida para pessoas´",
conta Edson. "Aí, ela pediu desculpas e começou
a chorar. Tem gente que gasta mais para cuidar de um cachorro
do que de uma pessoa que precisa".
Esse repúdio apontado por
Edson da sociedade em relação aos carroceiros
ele também já sentiu na pele. "Fui cortar
cabelo outro dia e, quando marquei horário no local,
eu estava de terno. No dia seguinte, quando cheguei lá,
já estava todo sujo, com chinelo. Quando o cabeleireiro
me viu entrar não acreditou que eu tinha marcado hora.
Ele me olhou de cima em baixo. Eu falei: ´Não
precisa mais. Vou embora´. Ele quis se desculpar, mas
eu disse: ´O senhor viu primeiro as minhas vestes para
depois ver a minha dignidade. As pessoas julgam as outras
pelo modo de se vestir. A roupa não diz nada do que
é a pessoa, sua personalidade, sua sensibilidade".
Mas estas dificuldades não
desanimam o artista, que desde cedo já teve de enfrentar
a falta de reconhecimento da sua família com a profissão.
Ele conta que sempre foi visto como a "ovelha negra da
família", já que os outros sete irmãos
escolheram profissões como advocacia, pedagogia, e
ele artes, vista como uma profissão que não
traz o retorno necessário para se viver bem. Com 11
anos, Edson já dava seus primeiros passos como artista,
quando fez uma escultura de madeira e recebeu um prêmio.
Aos 16 anos, já sabia que
queria usar a sua profissão para ajudar outras pessoas
e isso teria que ser feito na rua. Desde cedo se tornou voluntário,
já que sua família é muito católica
e desenvolve trabalhos sociais em diversos locais. Ainda hoje
é voluntário nas Casas André Luiz, instituição
que atende pessoas portadoras de deficiência mental,
onde trabalha arte e música com as crianças.
Para ele, é preciso fazer sempre algo e não
adianta ficar esperando os governantes tomarem a iniciativa.
"Amor sem ação não funciona. Você
tem que fazer as coisas para as pessoas. A palavra oração
já diz isso: é preciso agir", acredita.
Dedicação total
Por isso, muito antes de ter chegado ao Cambuci,
Edson já havia realizado um trabalho similar, de dedicação
total a uma causa. De 1993 até 1998, ele atuou junto
aos moradores de duas favelas localizadas na cidade de Santo
André, no ABC paulista, na região próxima
à Faculdade de Medicina do ABC. Ali, ele ensinava as
crianças, principalmente, a desenhar e pintar também,
além de mobilizar os moradores para conseguirem melhores
condições de vida. O grupo invadiu um terreno,
construiu um campinho de futebol e, logo depois, conseguiu
montar uma creche. Na época, Edson foi até ameaçado
por traficantes do local, pois estes achavam que o artista
estava atrapalhando os "negócios deles".
Depois disso, Edson foi a procura
de um novo lugar para atuar e descobriu os carroceiros do
Cambuci. Ele conta que muitas pessoas perguntam o porquê
dessa atitude dele, já que sempre teve tudo em casa.
A sua resposta é rápida: "O que eu estou
almejando é esse lugar bonito que Deus prometeu para
nós na Bíblia. Fazendo isso eu estou pedindo
saúde para minha família". Claro que a
família acha um tanto diferente a atitude de Edson,
mas ele garante que os pais se orgulham disso. "Minha
mãe fala que eu mato ela do coração!",
se diverte, ressaltando que, assim, dá muito mais saudade
das pessoas, já que ele volta para casa somente aos
fins de semana.
E Edson não pretende parar
com este trabalho tão cedo. Neste espaço, o
artista só sai quando conseguir montar um Núcleo
de Assistência aos carroceiros, com salas de reforço
escolar, alfabetização, e outros serviços.
A proposta é que eles tenham um lugar para tomar banho
também e poderem participar de um processo de desintoxicação.
Alguns empresários já estão interessados
no projeto. Quando isso se realizar, o destino de Edson será
a região dos bairros Casa Verde e Cachoeirinha, zona
Norte de São Paulo, que também enfrentam grandes
dificuldades. Quando completar 50 anos, aí sim Edson
pretende ter uma vida um pouco mais tranqüila, mas sempre
com dedicação a trabalhos voluntários.
Ele quer voltar a ensinar arte às crianças.
"Eu moro no mundo, mas
não sou do mundo. Eu aprendi a ouvir com o coração
e não com o ouvido. Eu vejo as coisas longe. Afinal,
a minha obra não é essa [apontando os quadros].
A minha obra é fazer a caridade. Enquanto houver uma
pessoa com frio, fome e medo é de minha responsabilidade.
Eu não quero saber se o prefeito faz, se meu professor
faz, ou outro faz. Mas sou eu que tenho que fazer. O teste
é comigo".
DANIELA PRÓSPERO
do site setor3
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