“Ser pobre é muito
pedagógico”. Ninguém nunca pronunciou
esta frase com tanta propriedade como Tânia Fischer,
57, a professora da Universidade Federal da Bahia - UFBA que
vem trazendo líderes da periferia para dentro da universidade.
Na ocasião, ela se referia à própria
infância humilde no interior do Rio Grande do Sul e
contava que cresceu numa colônia alemã onde aprendeu
desde muito cedo valores da vida associativa e do trabalho
cooperativo, herança da imigração.
Hoje pós-graduada em estudos organizacionais de gestão,
coordena o Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão
Social (CIAGS) da UFBA. Além de estudar modelos de
gestão social para comunidades locais, o Centro proporciona
às lideranças dessas comunidades a oportunidade
de se capacitarem em gestão. “Eu tive a sorte
de estudar em boas escolas, fui aluna do Paulo Freire e gostaria
que outras pessoas pobres também tivessem esse acesso
que eu tive.”
Em entrevista, Tânia Fischer relata experiências
positivas de gestão social, demonstrando que, quando
se oferece competência social a uma comunidade local,
ela é capaz de se sustentar e enfrentar as dificuldades
impostas pelo meio social.
Cidadania-e: Por que a senhora se interessou pela
Gestão Social?
Tânia Fischer: Comecei a trabalhar como professora
aos 15 anos, em cursos supletivos, alfabetização
e movimentos sociais. Na época da ditadura, eu coordenava
um supletivo que funcionava no porão de uma igreja,
num bairro popular de Porto Alegre, e essa igreja tinha uma
atuação forte na comunidade. E foi assim que
eu fui me envolvendo pela área social.
Cidadania-e: Como o Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento
e Gestão Social (CIAGS) criado na UFBA pode ser importante
para o resto do país?
Tânia Fischer: O Centro nasceu em 2001, com
uma disposição de criar um modelo de ensino,
pesquisa e extensão que fosse uma referência
em gestão social para o desenvolvimento, e que não
se restringisse às ONGs. Na área de graduação,
o principal diferencial é reunir numa mesma sala de
aula gestores sociais oriundos da periferia das cidades e
alunos da classe média de diversos cursos da graduação
da Universidade da Bahia e de faculdades particulares. Essa
experiência singular desperta nos estudantes da classe
média vocação para a gestão social
e permite aos líderes comunitários e gestores
das periferias a capacitação de qualidade. Além
disso, os estudantes de graduação realizam uma
residência social, isto é, passam três
meses desenvolvendo um projeto na comunidade local, uma experiência
que vai além do ensino teórico tradicional.
É uma experiência inédita no país
e é positiva tanto para os gestores das comunidades
locais como para os estudantes.
Cidadania-e: Qual o papel das organizações
locais frente à estrutura globalizada que favorece
a concentração de riquezas? O fortalecimento
do poder local é capaz de resistir à lógica
excludente do modelo capitalista neoliberal?
Tânia Fischer: Acredito que há uma lógica
diferente, que é a da transversalidade. A internacionalização
veio para ficar; nós teremos uma reforma no ensino
que vai internacionalizar o nosso modelo de educação
superior, e então não tem como lutar contra
isso. As comunidades locais precisam ter um fortalecimento
de estrutura de poder para que possam de fato conviver com
os benefícios desse mundo cosmopolita internacionalizado.
É preciso oferecer competência social para que
as pessoas possam se articular. Os gestores das comunidades
querem ter aulas de como é que se trata com os financiadores
estrangeiros que trazem projetos internacionais – e
não se trata só de aprender inglês. Então
temos que dotar as pessoas de competência para isso,
para que tenham condições de inserção
produtiva – emprego e renda. Isso passa também
por uma aprendizagem de pautas sociais; aprendizagem da gestão
dos recursos.
Cidadania-e: A senhora poderia citar uma experiência
em que a comunidade local obteve sucesso depois de passar
por uma capacitação em gestão de recursos?
Tânia Fischer: Os grupos afroculturais baianos
são verdadeiros laboratórios de práticas
sociais: eles foram capazes de desenvolver modelos de gestão
e com isso criaram formas de emprego e renda por meio da cultura,
de maneira bem-sucedida. Outro exemplo: nas comunidades pesqueiras,
o trabalho que oferecemos, para que elas possam desenvolver
tecnologias sociais de pesca em cativeiro, vem encontrando
muita dificuldade de aceitação por parte dos
pescadores tradicionais, porque há uma grande mudança
cultural de ofício. Nesse caso, procura-se trabalhar
com a comunidade mais jovem, que é mais permeável
a esse tipo de gestão. Trabalhar com essas comunidades
locais é um acompanhamento de longo prazo, não
é uma coisa fácil nem óbvia. Exige uma
sutileza no trato, um trabalho quase artesanal, mas é
possível sim.
Cidadania-e: As grandes empresas brasileiras começam
a adotar o conceito de responsabilidade social nas suas atividades.
Até que ponto esse interesse das empresas é
motivado pelo marketing institucional que essa imagem de empresa
responsável pode gerar ou até que ponto há
um real interesse em promover equilíbrio social?
Tânia Fischer: Eu diria que há um misto
das duas coisas. Não vejo nenhum problema nisso; não
existe nada que seja feito por nenhuma pessoa ou instituição
que não seja feito também com o objetivo de
se transformar numa referência ou de dar uma boa imagem.
Esse uso da ação social como imagem eu não
acho prejudicial em si – o que acho é que não
pode se esgotar nisso e não pode ser dominado por isso.
As empresas que conseguem obter os melhores efeitos das ações
sociais são aquelas pautadas por princípios
éticos, dotadas de uma tecnologia de gestão
de programas que os tornam mais do que meras mobilizações
da comunidade, que apresentam continuidade e, principalmente,
mecanismos de avaliação.
Cidadania-e: A senhora poderia citar uma experiência
do impacto social positivo na população local
promovido por uma ação social responsável
de alguma empresa?
Tânia Fischer: Poderia citar inúmeras
experiências. Um exemplo emblemático seria o
projeto da Fundação Tamar. Ele é apoiado
pela Petrobras, apresenta uma natureza que articula diferentes
organizações governamentais, mobiliza comunidades,
gera emprego e renda, traz uma consciência socioambiental,
produz um artesanato de excelente qualidade e prima pela marca
social ecológica. E tudo isso faz com que mantenha
uma sustentação além dos recursos de
doações.
Cidadania-e: Trabalhar com o social, sobretudo no
Brasil, país que ocupa a 109a posição
no índice de exclusão social (IES), é
um desafio complexo. Até onde os estudos sobre gestão
social podem solucionar esse problema da desigualdade social
brasileira?
Tânia Fischer: Eles não solucionam o
problema da desigualdade. Esses estudos existem para este
momento, para problemas que visualizamos hoje, e as nossas
ações devem mudar com o tempo tanto quanto os
problemas também mudarão. E eu espero que o
Brasil resolva estruturalmente seus problemas para que o conjunto
de esforços mobilizados nos programas atuais não
seja mais necessário. Eu desejo que o meu programa,
da forma como ele é agora, não tenha sentido
nenhum daqui a cinco anos. Esses estudos têm um papel
de coadjuvante. Atuamos a favor de políticas públicas
e com a iniciativa privada, com interesses conflituosos, mas
essa é a realidade complexa com a qual devemos trabalhar.
AMANDA VIEIRA
da Fundação Banco do Brasil
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