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Em 1986, na escola, aos 11 anos
de idade, Joseane Brito ouviu falar de um cursinho para meninas
sendo oferecido perto de sua casa, no Jardim São Marcos,
Campinas. No bairro de cerca de 36 mil habitantes, o segundo
mais violento do interior de São Paulo segundo o IBGE,
o tráfico de drogas assustava os moradores, mas o tal
cursinho de bordado a fios contados vinha se mostrando eficiente
na formação daquelas meninas, até então
sem perspectivas. Era o Grupo Primavera, fundado em 1981,
por Jane Chiang Sieh, chinesa naturalizada norte-americana.
As aulas agradavam as mães, pois ali as meninas começavam
a tecer seu futuro.
“Minha intenção inicial era assistir
e educar algumas jovens do Jardim São Marcos, um bairro
discriminado e marginalizado próximo da Minasa Trading,
empresa de meu marido. Eu, recém-chegada no Brasil,
não entendia por que as diferenças eram tão
gritantes. Sempre que passava por ali, sentia a necessidade
de fazer algo. Não adiantava simplesmente trancarmos
as portas dos carros blindados. Era preciso parar, conhecer
as necessidades daquela gente e fazer o possível”,
conta Jane, que até hoje lidera o grupo, apelidado
de GP.
Desde a data de sua fundação, o Grupo Primavera
já atendeu mais de duas mil meninas. Hoje, cada uma
das 30 costureiras e 50 bordadeiras chega a lucrar R$ 800
nos meses de maior procura – outubro, novembro e dezembro
– pelas bonecas, cartões de natal, jogos de mesa
e banho, artigos para bebê, pesos de porta, almofadas,
roupões e puxa-sacos.
Segundo dados do próprio Grupo Primavera, cerca de
60 famílias se beneficiam do trabalho, que gera em
torno de R$ 40 mil por ano, o que corresponde a 23% da renda
da instituição. Para os projetos na área
de educação e cultura, ela ainda conta com o
apoio de parceiros como a Fundação Vitae, BNDS,
Bosh, Graber Seguradora, Telefônica, Tetra Pak, Pricewaterhousecoopers,
entre outros. Uma renda complementar vem dos brindes solidários
encomendados por empresas como a Indústria Farmacêutica
Galena, Tetra Pak, Green, FMC, 3M do Brasil, Buckman Laboratórios
e Multimix, além de lojas de São Paulo. Em 2001,
o Grupo Primavera recebeu o certificado da Fundação
Banco do Brasil e hoje integra seu Banco de Tecnologias Sociais.
O dinheiro arrecadado com a venda dos produtos e das doações
se transforma em cursos de preparação para as
jovens da comunidade. Duzentas e trinta moças entre
11 e 17 anos estão aprendendo a arte de bordar. Um
programa de educação complementar integra o
curso. São três fases. A primeira, chamada de
formação básica, dura quatro anos e oferece
quatro horas diárias, de segunda a quinta-feira, com
oficinas de trabalhos manuais, arte, cultura, comunicação
e informática. Formadas, as meninas participam de um
programa de extensão denominado IMT (iniciação
ao mundo do trabalho), que prepara as jovens para entrarem
no mercado de trabalho como auxiliares de escritório,
projeto semelhante ao realizado no morro da Mangueira, no
Rio.
Quem quiser ir mais longe também pode cursar o Pacto,
que prepara tanto meninas quanto meninos para colégios
técnicos. Professores da Unicamp, contratados pelo
Grupo Primavera, são os responsáveis pelo ensino.
Alguns alunos conseguem inclusive ingressar na universidade.
Joseane, que entrou no GP aos 11 anos de idade, é
hoje, aos 29, gerente de produção do grupo e
não mora mais no bairro. Com formação
técnica em química, ela chegou a trabalhar em
laboratórios, mas a paixão pelo artesanato falou
mais alto. “Se não fosse pelo projeto, hoje eu
estaria trabalhando apenas para ganhar dinheiro. Graças
ao Primavera me sinto uma mulher realizada profissionalmente”,
diz.
Orgulhosa, a fundadora do Grupo conta que a maioria das meninas
que se forma no GP não fica na instituição,
muito menos no bairro de Jardim São Marcos. “O
objetivo do curso é justamente este: que estas meninas
se tornem grandes profissionais.” Mesmo com tantos frutos,
Jane acha que ainda tem muito a fazer: “Faço
o mínimo frente às necessidades sociais de nosso
país.”
No Nordeste
Em uma região carente localizada no sul da Paraíba,
também é o bordado que vem melhorando a vida
de centenas de mulheres. O Projeto Rendas do Cariri é,
em poucas palavras, um conjunto de associações
de rendeiras de cinco municípios da região do
Cariri Ocidental: Monteiro, Camalaú, São João
do Tigre, São Sebastião do Umbuzeiro e Zabelê.
Lá, onde a seca prejudica a agricultura de subsistência,
são as rendas que estão dando fôlego aos
habitantes.
Tradicionalmente, a região sempre foi um pólo
do artesanato da renda renascença, confeccionada com
agulha, linha e lacê. O processo se divide em três
passos: é feito um desenho em papel grosso, o lace
é aplicado e os pontos são tecidos. Sua origem
remonta ao século 16. A ilha de Burano, em Veneza,
na Itália, seria o berço deste tipo de renda,
que chegou ao Brasil, e ao Cariri, graças às
mulheres dos colonizadores portugueses.
Nos últimos anos, a atividade vinha entrando em declínio
por causa dos chamados atravessadores, para quem as rendeiras
vendiam suas peças a preços irrisórios,
por cerca de R$ 5 cada novelo rendado. Segundo os moradores
da região, os atravessadores nunca revelam por quanto
repassam estas peças no mercado, mas eles estimam que
seja pelo triplo do valor pago às mulheres. Como conseqüência,
muitas jovens pararam de se interessar pelo trabalho histórico
e de retorno tão baixo, prejudicando a renovação
das rendeiras. O Rendas do Cariri surgiu para mudar este panorama,
incentivando a prática associativa e a busca por novos
mercados.
Criado primeiramente no município de Camalaú,
em 1999, graças à ONG Parai’wa e ao Sebrae
paraibano, com o apoio da Universidade Federal da Paraíba
e das prefeituras municipais, o Projeto Rendas do Cariri tem
associações em cada um dos cinco municípios.
A maior delas concentra a comercialização da
renda e está localizada em Monteiro. Fundada em 2000
e presidida por Marlene Lopes, a Casa das Rendeiras fornece
matéria-prima para as rendeiras e facilita a comercialização
dos produtos – vestuário para adultos e bebês,
roupas de cama, mesa e banho, aplicações e acabamentos
–, além de oferecer cursos de capacitação
e atualização para as mulheres da região.
Se antes elas recebiam, dos atravessadores, cerca de R$ 5
por novelo rendado, agora podem conseguir até R$ 25.
Como cada novelo leva de três a sete dias para ser trabalhado,
algumas rendeiras chegam a quase um salário-mínimo
por mês.
A maioria das mulheres que trabalha para a associação
tem uma vida semelhante à de Ivani dos Santos, de 34
anos, dona-de-casa de Monteiro. Mãe de quatro filhos,
ela faz artesanato para complementar a renda do marido, que
é pedreiro. Ivani, que já morou em Brasília,
pensa em voltar a viver na capital federal. “Nossa sobrevivência
na Paraíba é muito difícil. Nunca sei
quando meu marido vai estar trabalhando. Fazendo renda, eu
garanto um dinheiro para a família. Trabalhando em
casa, posso também tomar conta dos meus filhos. Na
associação, aprendi muitos pontos novos e fiquei
livre dos atravessadores”, conta.
Hoje, 35 rendeiras estão sendo capacitadas pelo curso
de formação oferecido em Monteiro e 75 trabalham
na confecção dos produtos. Desde que a associação
foi fundada, mais de 100 mulheres já participaram de
cursos de capacitação. Segundo dados do Sebrae
paraibano, das cerca de 20 mil mulheres que moram no Cariri,
quatro mil subsistem abaixo da linha da pobreza com a venda
das rendas. Destas, um número baixíssimo se
associou. Segundo Marlene, em Monteiro são somente
35, num total de 350 nos cinco municípios do Cariri
onde o projeto está instalado. Os destaques são
Camalaú e São João do Tigre, com 100
cada. Associadas, as mulheres recebem documentação
e carteirinha. Por mês, contribuem com R$ 2.
“Muitas rendeiras ainda têm medo de se associarem
porque estão nas mãos dos atravessadores. São
grupos que chegam a vir de Pernambuco e de outros municípios
do Cariri. Eles vivem da exploração destas mulheres.
E elas temem passar fome sem os atravessadores. Mas nós
vamos mudar essa situação”, sonha Marlene.
Trabalhando sob encomenda, as rendeiras do Cariri já
chegaram a enviar peças para a Itália e Portugal.
Agora Marlene aguarda uma encomenda dos Estados Unidos, mas
reconhece que seu grupo ainda não tem condições
de atender grandes demandas. Ela acredita, porém, que
a situação tende a melhorar. A prefeitura doou
o terreno e o governo do estado está terminando de
construir uma nova sede para a Casa das Rendeiras, no Centro
Comercial de Monteiro. Ela terá duas lojas, secretaria,
oficina-escola, fábrica, lavanderia e até um
quarto para abrigar possíveis visitantes interessados
nos produtos. Novas sedes também estão sendo
levantadas nos outros municípios.
“O que falta agora é criarmos uma identidade
para a nossa renda, uma linha de produção. Já
estamos trabalhando nisso e em breve estaremos comercializando
produtos com a nossa cara”, planeja Marlene.
DANIELLE CHEVRAND
da Fundação Banco do Brasil
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