BRASÍLIA
e RIO. Aos 44 anos, Elizabete de Oliveira Barbosa é
mãe de oito filhos e avó de quatro netos. Vive
numa casa de dois quartos, sala, cozinha e banheiro em Queimados,
na Baixada Fluminense. Está separada do segundo marido.
Teve o primeiro filho aos 21 anos. Sua filha mais velha, Sílvia,
foi mãe pela primeira vez aos 20 anos — hoje,
aos 23, tem duas meninas. Com os R$ 550 que ganha por mês
trabalhando como empregada doméstica, Elizabete sustenta
sete pessoas e segue, inconformada, o círculo vicioso
que tem marcado gerações de negros pobres no
país.
"Dizem que as coisas mudam, mas eu não vejo.
Na minha vida nunca mudou nada. Nem na da minha mãe.
O negro no Brasil, para conseguir alguma coisa, tem que batalhar
muito. E se consegue, enfrenta preconceito. É assim",
atesta.
O desabafo de Elizabete resume com precisão uma das
principais conclusões do Atlas Racial Brasileiro, do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(Pnud). O relatório afirma que, entre 1982 e 2003,
a proporção de negros entre os pobres e indigentes
do Brasil praticamente não se alterou. Em mais de duas
décadas em que o país migrou da ditadura para
a democracia, da hiperinflação para a estabilidade,
do isolamento para a abertura comercial, o percentual de negros
entre os pobres se manteve em torno de 65% e entre os indigentes,
em 70%.
"O que observamos é que a raça é
a dimensão mais estrutural da pobreza e da indigência
e a mais difícil de atacar. Nem quando houve choques
redistributivos com planos econômicos, como o Cruzado,
a situação dos negros melhorou. A pobreza não
é exclusiva, mas é muito mais intensa entre
os negros e sair dela, muito mais difícil", diz
o o demógrafo Eduardo Rios-Neto, do Centro de Desenvolvimento
e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, um dos autores
do Atlas.
O relatório foi apresentado ontem na Câmara
dos Deputados, em cerimônia que teve a presença
do presidente da casa, deputado João Paulo Cunha, da
secretária especial de Política de Promoção
da Igualdade Racial, ministra Matilde Ribeiro, e do representante
do Pnud no Brasil, Carlos Lopes.
"O que mais chama a atenção é a
persistência da desigualdade racial no Brasil",
disse Lopes.
Renda e escolaridade
O extenso banco de dados organizado pelo Pnud com
dados dos censos e das pesquisas amostrais do IBGE mostra,
por exemplo, que mesmo comparando pessoas de mesma escolaridade,
a renda dos negros é menor que dos brancos. Para José
Carlos Libânio, coordenador de Avaliação
de Políticas do Pnud no Brasil, está é
uma prova de que a discriminação racial explica
a desigualdade brasileira.
Ele chamou a atenção para os dados de renda
e escolaridade. Em 2002, entre a população analfabeta,
os trabalhadores brancos recebiam um salário/hora em
média 33% maior do que os negros. Da mesma forma, as
mulheres brancas ganhavam 12% a mais do que as negras. A disparidade
mantém-se em todos os níveis de escolaridade.
Assim, um homem branco com 15 anos ou mais de estudo recebia
um salário médio por hora de R$ 18,32, contra
R$ 12,41 do negro.
"Este quadro expressa o racismo nas relações
do trabalho neste país, que aprofunda as desigualdades.
Ele está institucionalizado no Estado e na sociedade
brasileira", disse Matilde Ribeiro.
Para o ministro da Educação, Tarso Genro, a
desigualdade racial está ligada à origem histórica
da população negra, que chegou ao Brasil na
condição de escrava:
"Não creio que exista racismo no sentido de ódio
de raça contra raça", disse Tarso ao GLOBO,
admitindo, no entanto, que os negros pobres sofrem uma discriminação
dupla. Eles seriam discriminados pela condição
socioeconômica e pela raça, enquanto os pobres
brancos enfrentariam só o primeiro tipo.
O Sistema de Avaliação da Educação
Básica (Saeb) do Ministério da Educação
já mostrou que os alunos negros tiveram pior desempenho
do que os brancos, mesmo em famílias da mesma faixa
de renda. Para técnicos do ministério, o mais
provável é que o aluno negro seja vítima
de racismo, mesmo que subliminar, na sala de aula. Tarso defendeu
a política de cotas para negros nas universidades.
João Paulo também.
O relatório traz estatísticas sobre saúde.
Mostra que a esperança de vida dos negros é
cinco anos menor que a dos brancos. E que o acesso a hospitais
é desigual entre os dois grupos e que a mortalidade
infantil ainda é maior entre as crianças negras,
embora venha caindo nos últimos anos.
DEMÉTRIO WEBER
FLÁVIA OLIVEIRA
do jornal O Globo
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