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"É
muito fácil falar, planejar, esquematizar, porém
já passou da hora de sermos de fato protagonistas de
nossas histórias. Até quando a verdadeira versão
estará trancafiada em porões de baixa-estima,
mar de lamentos e blá, blá, blá...? Vamos
mostrar nossas caras pretas em todos os lugares, bombardear
os guetofóbicos com nossa auto-estima, invadir as universidades
e espaços públicos, pois para eles o gueto,
a favela, a periferia é um lugar pavoroso, com pessoas
feias e frias. Eu não me enquadro nesse rótulo
e você?".
O editorial do fanzine* Mjiba (jovem mulher revolucionária,
no dialeto africano shona, do país Zimbabwe) escrito
por Elizandra Batista de Souza, 21 anos, traz palavras críticas
sobre a realidade repleta de preconceitos as moradores das
periferias das grandes cidades, mas convida à ação.
É com esse espírito de mudança, que há
mais de três anos, a jovem moradora do Jardim Noronha,
na zona Sul da cidade, produz esse tipo de comunicação
alternativa. Em suas páginas, é possível
encontrar poesias de autores consagrados e de outros escondidos
nos guetos da periferia, trechos de músicas, além
de registros sobre pessoas que fizeram história no
movimento negro.
Livros - comprados em sebos ou emprestados da biblioteca,
por falta de verba - são a fonte de informação.
A cultura negra estampa as páginas do fanzine. Liberdade
de expressão é palavra chave nesta imprensa
alternativa. "Há um desprezo pela cultura negra.
Ela só é importante no Carnaval ou no dia 13
de maio [comemoração da Abolição
da Escravatura]. E ainda perguntam porque dia 20 de novembro
[Dia Nacional da Consciência Negra] tem que ser feriado!.
Sei que não vou acabar com o preconceito pelo meu fanzine,
mas tento que pelo menos mais alguém pense nessa problemática
também. É uma questão mesmo de seduzir
as pessoas para o lado bom das coisas. Se pelo menos uma pessoa
que ler o fanzine e tiver uma ação diferente,
já foi válido", conta a estudante, que
agora faz cursinho para prestar vestibular em História,
além de se especializar em Jornalismo.
"Eu pesquisava tanto sobre o assunto e não queria
que isso ficasse somente guardado para mim. Tem tanta coisa
boa por aí, mas a imprensa só mostra a violência.
Por isso, queria divulgar o nome dessas personalidades negras
e tinha o anseio de ver a produção da periferia
em evidência. Além disso, queria mesmo cutucar
as pessoas do meu meio porque elas, até pouco tempo
atrás, não falavam sobre questões como
preconceito, cotas. O que eu quero é mostrar para o
próprio negro que ele é igual a qualquer outro.
A igualdade ainda é esperança", comenta
Elizandra sobre o que a motivou a produzir o seu fanzine.
O interesse pelo Hip-Hop também despertou esse desejo
da jovem em colocar no papel o seu conhecimento sobre o assunto.
"O Hip-Hop é formado pelo break, grafite, DJ e
o Rap. Eu não sei cantar, desenhar, e pensei: 'vou
ter que ser somente público?' Decidi então fazer
um material que pode até servir para eles enriquecerem
as letras de música também", conta.
Mas colocar o fanzine nas ruas não foi tarefa fácil.
Sem computador em casa, Elizandra teve que pedir socorro a
uma amiga que tinha uma máquina de escrever. Aos poucos,
com a economia que fazia, conseguiu comprar o material para
si. Cada moedinha guardada servia para pagar o xerox da produção.
Apesar do fanzine ter se modernizado um pouco com a ajuda
do computador e dos materiais que recebe de outros colegas,
que encaminham sugestões, textos e até mesmo
desenhos para ilustrar as capas do fanzine, as dificuldades
financeiras - ela paga as 500 cópias que faz - para
manter o fanzine são muitas. Isso acaba gerando uma
quebra na periodicidade. Normalmente, o Mjiba sai bimestralmente
ou, às vezes, num espaço de tempo ainda maior.
Está na 15ª edição.
Apesar das dificuldades, a jovem não pretende parar
de elaborar o seu fanzine, pois, a cada nova edição,
é como se ela "tivesse ganhado asas". "Para
mim, o fanzine foi o primeiro sonho realizado. É como
se o meu pensamento tivesse ido realmente para o concreto",
conta empolgada, lembrando o impacto que o Mjiba já
gerou em alguns momentos. A jovem foi convidada a realizar
uma oficina em Osasco, pelo Instituto Paulo Freire, sobre
fanzine para outros adolescentes. Depois dessa atividade,
um dos alunos da escola começou a elaborar o seu próprio
fanzine. "Tem amigos que falam que o fanzine despertou
a vontade de ler mais, outros decidiram escrever poemas, voltar
a estudar e até usam o conteúdo para fazer trabalhos
de escola. É uma troca muito gostosa, afinal, eu não
sei onde meu fanzine vai parar, quem vai ler. Só depende
de outras pessoas fazerem cópias e passar pra frente".
Por essa troca constante de informações, idéias
e materiais, é comum os fanzineiros se conhecerem e
formarem uma rede forte de contato, com amigos de todos os
lugares do Brasil. Foi assim que a jovem Elizandra conheceu
Valter Luis Lopes de Barros, o Walter Limonada, 30 anos, produtor
do fanzine "Folhas de Attittudes", morador do bairro
Silvina, na cidade de São Bernardo do Campo, São
Paulo.
Assim como a escritora do Mjiba, Limonada também
é fanático pelo Hip-Hop, tanto que a produção
do seu fanzine começou depois de se tornar rapper,
em 1992, apesar do interesse vir de longe, na época
de histórias em quadrinhos, quando freqüentava
ainda criança a banca de jornal do pai. Hoje, ele já
tem dois CDs lançados - o último, chamado "Teimosia
- é defeito ou qualidade?", foi às ruas
em março desde ano, com todas as músicas de
sua autoria - e participa do grupo R.U10 (Raças Unidas
elevadas a 10ª potência).
Desde 1992, Limonada passou a se corresponder com fanzineiros
de diversos locais, como Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul,
Minas Gerais e Espírito Santo. Em 2001, o rapper decidiu
criar o seu próprio fanzine, já que não
encontrou em outras produções muitas informações
sobre a sua cidade e a produção cultural da
região. "Eu queria mostrar o trabalho dessa galera
e o meu também, principalmente sobre o Hip-Hop. Essa
é uma cultura universal. As pessoas acham que só
fala de coisas negativas, como brigas, tiro, mas não.
É bem diferente. Tanto que o nome do fanzine é
justamente isso. A pessoa que ler, vai ter uma idéia
e um dia vai tomar uma atitude. Afinal, isso fica na nossa
cabeça", explica Limonada, lembrando as dificuldades
iniciais.
"Às vezes, eu entregava para as pessoas e elas
diziam: 'que negócio é esse assim, xerocado?
Quando eu virava as coisas, elas jogavam no chão. Fiquei
até desanimado com as críticas iniciais, mas
depois, quando recebi um elogio de um colega, que tirou 10
num trabalho da escola com uma informação que
eu havia escrito no fanzine, decidi continuar", se recorda.
A partir daí, a caneta e o papel não saíram
mais de perto da cabeceira da cama, pois, quando surge uma
boa idéia, nem que seja de madrugada, Limonada corre
para escrever.
Hoje o fanzine conta com diversos tipos de informação,
apesar de seguir, conforme explica Limonada, um gênero
crítico-sarcástico. "Gosto de dar 'alfinetadas'
nas pessoas com os meus textos". É possível
encontrar desde textos mais críticos, falando sobre
a batalha dos grupos de Hip-Hop para encontrar apoio ou os
péssimos programas da televisão brasileira,
até homenagens a lideranças e pacifistas como
Gandhi, informações sobre problemas de saúde
causados pelo cigarro, efeito das drogas, reciclagem ou dicas
a respeito de bons livros e sites com matérias interessantes.
Todo mundo colabora, desde o vizinho, os participantes do
grupo de Rap, e até o paizão, num momento de
inspiração.
Mas, assim como a amiga Elizandra, o fanzineiro também
encontra dificuldades financeiras para manter o Folhas de
Attittude, que está na 11ª edição,
com periodicidade bimestral, ou mais. "Digo que para
fazer fanzine tem que ter amor pela coisa. Eu me dedico porque
eu considero o fanzine como se fosse um projeto social porque,
além de ser um trabalho voluntário, eu ajudo
as pessoas a despertarem o seu senso crítico a partir
dos textos. Além disso, no fanzine, a gente não
fica preso a ninguém. É a opinião de
cada um e pronto. Afinal, a liberdade de expressão
é fundamental num país democrático como
o nosso", acredita Limonada, que aponta a necessidade
de se divulgar mais esse tipo de produção por
toda a sociedade, partindo de uma atitude ativa dos próprios
fanzineiros.
Ele mesmo já tenta, sozinho, fazer um pouco desse
trabalho. Além de rapper, Limonada ataca de repórter
em diversas publicações, como o Jornal Estação
Hip-Hop, Revista Rap Brasil, além de ser colunista
em seis sites sobre o assunto. Em cada show ou evento que
participa, sempre distribui os fanzines para divulgar ainda
mais essa produção alternativa. Agora, ensaia
a elaboração de alguns textos para, quem sabe
num futuro, lançar um livro. "É uma raiz
que fomos criando aos poucos e a árvore já está
crescendo e vai ter logo as sementes desabrochando. É
a revolução cultural".
Curiosidade
A palavra fanzine vem da contração de duas palavras
inglesas e significa literalmente 'revista do fã' (fanatic
/ magazine). Alguns estudiosos do assunto consideram fanzine
somente a publicação que traz textos, informações,
matérias sobre algum assunto. Quando a publicação
traz produção artística inédita
seria chamada Revista Alternativa. No entanto, o termo fanzine
se disseminou de tal forma que hoje engloba todo tipo de publicação
que tenha caráter amador, que seja feita sem intenção
de lucro, pela simples paixão pelo assunto enfocado.
Por fanzine, entende-se a publicação amadora
feita muitas vezes de forma artesanal (com colagens, impressos
em mimeógrafos ou fotocópias). São editados
quase sempre em pequenas tiragens e servem para a expressão
livre de seus editores a respeito de qualquer arte ou hobby.Os
fanzines tiveram início na década de 1930, nos
Estados Unidos.
No Brasil, sua primeira publicação foi em Piracicaba,
no ano de 1965, sob o comando de Edson Rontani. Este zine
pioneiro chamava-se Ficção, e era o boletim
do Intercâmbio Ciência-Ficção Alex
Raymond. Nessa época, ainda nem se conhecia o termo
fanzine por aqui, que só começou a ser usado
de forma maciça no final da década de 70.
Fanzine é uma publicação impressa em
que cada leitor pode ter seu exemplar, mas, com o desenvolvimento
da tecnologia, a palavra fanzine já está sendo
usada em trabalhos que não estão na forma de
revista, como é o caso de páginas na internet
ou CD-ROMs que são chamados de fanzine eletrônico.
Há vários gêneros dessa publicação,
como música, literários, de cinema, além
de quadrinhos. A elaboração dos originais da
edição depende principalmente da visão
do editor, sua capacidade de criar, de contatar outros criadores,
de organizar todo o material disponível. A edição
será reflexo da formação cultural do
editor. Todo tipo de material é válido para
compor a edição (HQs, poesias, contos, fotos,
ilustrações, colagens etc).
Fontes: Livro: O rebuliço apaixonante dos fanzines,
de Henrique Magalhães, publicado pela Editora Universitária
da UFPB e artigo de Edgard Guimarães, que colabora
com fanzines desde 1979 e participou do livro As Histórias
em Quadrinhos no Brasil - Teoria e Prática, com texto
teórico sobre fanzine.
DANIELE PRÓPERO
do site setor3
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