O governo
federal definiu que o grupo que discutirá a descriminalização
do aborto não colocará em questão a moralidade
da prática, e sim seu efeito na saúde pública.
Com isso, os setores envolvidos com o assunto pretendem minimizar
a pressão de grupos religiosos, notadamente a Igreja
Católica, contra a legalização do aborto.
Essa é a postura vigente hoje no governo. O grupo de
trabalho deverá ser anunciado no começo de março.
Ainda neste mês, será definido quem participará
do grupo por parte do Legislativo e da sociedade civil. Os
critérios de escolha não foram fechados.
Outra indefinição é sobre quem terá
cadeira e quem será apenas ouvido ou consultado. Há
forte pressão de grupos feministas para que entidades
religiosas declaradamente contra o aborto não emperrem
o debate.
A Igreja Católica, por sua vez, já avisou que
vai ressaltar o argumento de que o direito a ser respeitado
também é o do feto, e não só o
da mãe.
Do lado do governo, a postura pró-legalização,
ligada ao ideal feminino de defesa do direito reprodutivo,
é endossada pelos órgãos que irão
liderar o grupo de discussão: Ministério da
Saúde e secretarias de Políticas para Mulheres,
Direitos Humanos e Promoção da Igualdade Racial.
O Código Penal prevê penas de detenção
de um a três anos para a mulher que pratique o aborto.
Também é punido quem provoca o aborto na mulher.
As únicas exceções são quando
há risco de morte para a gestante ou em caso de gravidez
resultante de estupro.
Projeções baseadas nos atendimentos pelo SUS
para curetagem pós-aborto sugerem que cerca de 1 milhão
de abortos clandestinos são realizados no país
todo ano.
Raramente a mulher é denunciada ou punida, mas a proibição
faz com que o aborto seja feito em condições
precárias, com riscos à saúde, com incentivo
ao mercado negro de medicações e com desigualdades
econômicas.
A ministra Nilcéa Freire (Políticas para as
Mulheres) é partidária da defesa dos direitos
reprodutivos da mulher. Para ela, quando há punição
pelo ato, não há livre arbítrio da mulher.
O ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos) já
marcou posição: "Concordamos com a proposta
de descriminalização".
A ministra Matilde Ribeiro (Igualdade Racial) assume posição
pela descriminalização e diz que a questão
é primordial na sua agenda: "A mulher negra é
a mais excluída. Não tem acesso a atendimento
nem direito de decidir sobre seu próprio corpo".
No Ministério da Saúde, a visão pró-direitos
reprodutivos também é dominante. A defesa da
decisão da mulher na procriação é
levada a sério e até a fertilização
in vitro deve ser incluída no SUS. "Não
é só questão de saúde. É
de direitos humanos", afirma Jorge Solla, secretário
nacional de Atenção à Saúde.
Para esse setor do governo, a postura da Igreja Católica
e outros grupos religiosos representa um dos principais entraves
à revisão legislativa.
A posição da CNBB (Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil), porém, encontra resistência
religiosa interna. O grupo Católicas pelo Direito de
Decidir lançou uma campanha pela legalização
do aborto no Fórum Social Mundial que foi prestigiada
pelas ministras Nilcéia e Matilde.
"Queremos "desorrorizar" o aborto, não
apenas descriminalizar. Essa matéria não é
dogma da igreja e a proibição desrespeita o
preceito religioso de recurso à consciência",
disse Alcilene Cavalcanti, uma das coordenadoras.
A descriminalização trataria apenas de projeto
de lei pela retirada de dois artigos do Código Penal.
Porém, a preocupação é com o papel
do Estado caso o aborto se transforme em prática legal.
A determinação de regras e procedimentos seria
assunto técnico para uma segunda etapa.
A preocupação é enfatizar que o aborto
não pode ser tratado como crime, sem que isso se transforme
em apologia à prática. Outra preocupação
é o possível impacto negativo nos programas
de planejamento familiar e contracepção já
em curso.
LEILA SUWWAN
da Folha de S. Paulo, sucursal de Brasília
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