Os livros
infanto-juvenis que lotam as prateleiras das livrarias brasileiras
trazem um mundo de sonho e imaginação, repleto
de contos de fadas e super-heróis invencíveis.
Mas, toda regra tem sua exceção. O escritor
Guto Lins vai além e, com poesia, retrata a vida de
milhões de crianças que vivem pelas ruas do
Brasil e são obrigadas a trabalhar para sobreviver.
O livro "Zezé: Trabalho não é Brincadeira!"
(Editora Larousse do Brasil) traz, em pequenos poemas, aquela
criança que vende bala no semáforo, flor nas
portas de bares, de madrugada, e até faz malabarismos
para "distrair" os motoristas que aguardam o sinal
verde. Tem ainda aqueles Zezés que precisam se sustentar
porque foram abandonados pelos pais, fugiram de casa, ou que,
com o pouco que recebem, ajudam os pais desempregados.
Logo na dedicatória do livro há uma homenagem
a um "Zezé" que Guto Lins conheceu em janeiro
nestas "coincidências" da vida, em que todos
tropeçam um dia. Num domingo à tarde passeando
com a família numa praça do Rio de Janeiro,
o autor conheceu o garoto Patrick, com cerca de oito anos,
e que dizia viver na favela Vigário Geral. "Já
estava escuro e ele não tinha casa para voltar e nem
dinheiro do ônibus. Talvez, não tivesse nem pai
e mãe. Lá estava um caso clássico de
Zezé. Durante meia hora de conversa com ele, coloquei
o meu pé no chão", recorda.
E Zezés, é o que não faltam pelo país.
De acordo com os Indicadores Sociais divulgados pelo IBGE,
em 2003 havia cerca de 5,1 milhões de crianças
e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando. Em particular,
1,3 milhão de crianças entre 5 e 13 anos de
idade se encontravam ocupadas, um contingente que corresponde,
aproximadamente, à população do Estado
de Tocantins. Em média, o rendimento das crianças
e adolescentes de 10 a 17 anos de idade contribuía
com cerca de 17% do rendimento familiar total. Já 38%
das crianças e adolescentes ocupados não recebiam
remuneração pelo seu trabalho.
Na faixa etária de 10 a 15 anos, essa proporção
era ainda maior (53,2%) e chegava a 64,8% no Nordeste. Nas
áreas rurais, o trabalho precoce era mais acentuado
do que nas áreas urbanas. De 1,8 milhão de crianças
de 10 a 17 anos ocupadas nas áreas rurais, 37,6% começaram
a trabalhar com menos de 10 anos de idade. O trabalho infantil
é proibido pela Constituição Federal
até os 16 anos, exceto na condição de
Aprendiz.
Guto Lins, é designer gráfico e autor de mais
15 obras, entre elas a série infanto-juvenil Família
(Brinque-Book) e "Manual de Boas Maneiras" (Jorge
Zahar), conta que o poema surgiu há mais de quatro
anos como uma leitura sua como cidadão a partir da
observação da situação dessas
crianças nas ruas das grandes cidades. "Não
tem como passarmos impunemes por essa realidade. Não
há como não se preocupar ou se emocionar. Faz
a gente pensar: 'eu assumo minha culpa nisso também'.
Minha válvula de escape foi escrever. Mas, percebi,
que aquele texto não podia ficar somente comigo. Tinha
que virar algo", explica Guto Lins.
Apesar de ser um tema complexo e complicado de se tratar
numa publicação infantil, Guto ressalta que
o livro foi todo trabalhado para não trazer lamúrias,
tristezas e não ser panfletário, levantando
qualquer bandeira. Ele traz essa questão para o universo
infantil de forma mais lúdica, transformando Zezé
num personagem universal, menino ou uma menina, de qualquer
lugar do mundo. A preocupação foi a de não
remeter à violência presente na vida dessas crianças
e adolescentes que perambulam pelas ruas, e mostrar sim que
todos têm direitos e, por isso, merecem ter uma infância
digna. "Tentei tirar a imagem dessa criança como
agente da violência, mas sim como fruto dela",
comenta.
Por isso, além da atenção especial
à forma do texto, as ilustrações que
estampam as páginas da publicação também
foram cuidadosamente pensadas. Guto Lins trabalhou as imagens
a partir de desenhos que o filho dele, João Lins, de
5 anos, fazia na escola. O designer produziu ainda outras
ilustrações com desenhos que ele mesmo fez usando
a mão esquerda para ficar mais parecido com desenhos
infantis. O autor explica que a idéia era misturar
a visão do adulto e da criança que norteia todo
o livro e não estabelecer uma faixa etária específica.
O autor afirma ser ainda uma incógnita a recepção
das crianças para o tema, mas já vê dentro
da própria casa os resultados desse contato direto
com o livro. O filho João hoje levanta questões
sobre a situação daqueles Zezés, e pergunta
ao pai o porquê das crianças dormirem nas ruas
ou não estarem na escola. A idéia de Guto é
sensibilizar mais os adultos, afinal, são eles normalmente
os responsáveis por escolher e comprar os livros que
seus filhos irão ler.
"A criança ainda não tem a dimensão
de entender o porquê do trabalho infantil, só
vê o resultado final. Mas o adulto convive com essa
questão complexa há muito mais tempo. É
evidente que qualquer obra literária tem esse poder
de sensibilizar para o tema que se propõe. Assim, se
esse adulto tentar pelo menos resolver o problema daquela
criança que vive ali na esquina da sua casa, já
foi algo bom do livro". Mas é na escola que Guto
Lins acredita que a publicação "Zezé:
Trabalho não é Brincadeira!" ganhará
dimensão e impacto maiores, pois será possível
promover um trabalho pedagógico sobre o tema e ampliar
a reflexão a respeito do trabalho infantil, gerando
um resultado multiplicador dessas discussões muito
mais amplo.
DANIELE PRÓSPERO
do site
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